No caminho em que vamos, serão as futuras gerações constituídas de homens e mulheres autômatos, dirigidos despoticamente por uma elite exploradora dos seus instintos. Esses homens e mulheres formarão a massa amorfa das coletividades estandardizadas, que se moverão, como aparelhos mecânicos, ao arbítrio de alguns indivíduos conhecedores da técnica de formação da opinião pública.
Estamos, presentemente, fabricando homens e mulheres em série, como se fabricam automóveis, relógios e máquinas de cortar salame. Os instrumentos utilizados nessa indústria são o cinema, o rádio e as revistas ilustradas.
O processo é simples. Trata-se de atrofiar as faculdades criadoras da criança e do adulto. Tudo o que representar esforço pessoal deve ser evitado no educando. Desde o método de ensinar a ler, a preocupação dos técnicos deve ser a de habituar o aluno ao mínimo esforço. Quem trabalha é o professor, ou a professora. Acostuma-se, assim, a criança a uma receptividade passiva, que lhe vai anulando toda a capacidade de prestar atenção, de observar, comparar, deduzir e concluir. Dá-se-lhe a comida intelectual já mastigada e digerida. O menino ou menina acostuma-se a ser dirigido e perde todo o poder de direção própria, autônoma, criadora.
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Aprendendo a ler, e mal, trata-se de impedir que o adolescente adquira o hábito de leitura. Esse futuro homem-autômato ou mulher-autômato deve ser o leitor exclusivo dos títulos dos jornais, dos artiguinhos ligeiros que não exigem esforço cerebral. Como conseguir isso? Muito fácil: acostumar o paciente a apreender historietas em desenhos.
Verificou-se que, quando alguém lê uma novela, ou um romance, ou um conto, forma uma ideia pessoal dos personagens e dos ambientes. Várias pessoas, lendo Robinson Crusoé, ou o D. Quixote, ou o Conde de Monte Cristo, ou as obras de Victor Hugo, ou Manzoni, ou Pierre Lotti, acontece que cada uma idealiza a fisionomia dos personagens, imagina uma casa descrita, uma sala, um jardim dos quais fala o escritor. Quer dizer, a unidade de concepção do objeto descrito é diferenciada pelo poder imaginativo de cada leitor. Isto é, o leitor colabora com o autor, trazendo o contingente do seu próprio temperamento, dando caráter pessoal à efabulação, que não perde o que tem de essencial e ganha em universalidade. Significa isto que cada leitor tem a sua personalidade; mas como a preocupação moderna é destruir totalitariamente a personalidade humana, engendrou-se uma processo de transmitir narrativas: é o uso de figurinhas em quadros sucessivos e uma ou outra palavra elucidativa, o que é raro.
Um livro ilustrado com arte é incontestavelmente sedutor e contribui para desenvolver o gosto da leitura. O leitor, pequeno ou grande, vendo um quadrinho com a legenda (por exemplo) a dizer: “…e João, no tombadilho, sacudia o lenço”, sente viva curiosidade de ler todas as páginas para achar a cena descrita pormenorizadamente. Mas um livro, ou uma revista, que do começo ao fim só traga figurinhas, corta pela raiz todo o poder criador do menino ou adulto que folheia as suas páginas e, ao mesmo tempo, desabitua-os da leitura, atrofia-lhes a faculdade da atenção, torna-os preguiçosos mentais.
Nada mais nocivo à personalidade. Quem se habitua a acompanhar historietas em quadrinhos tem de pensar com o desenhista, tem de conceber com o desenhista, tem de aceitar o que o outro imaginou. Quer dizer: acostuma-se uma geração a subordinar-se a “ideias feitas”. No fim de algum tempo, essa geração não sabe mais imaginar, pensar, refletir, deduzir, concluir por conta própria; mas entrega-se à imaginação, ao pensamento, à reflexão, à dedução e à conclusão alheias. É um autômato. É um boneco, não é uma criatura humana.
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Fala-se hoje em totalitarismo de Estado, mas eu não conheço pior totalitarismo do que esse, que destrói, inteiramente, a personalidade humana. Precisamos dar o brado de alerta contra essa organização internacional dos desenhos animados que, a meu ver, constitui a pior das ameaças à democracia, que é o estilo de vida onde mais se exige o poder expressivo do indivíduo, como agente autônomo e consciente, insubordinável à opinião fabricada para o uso dos ignaros.
Mas além das historietas pelos quadrinhos, temos o desenho animado no cinema. Até certo ponto, é aceitável e, força é dizer, tem produzido algumas obras-primas, como por exemplo a Branca de Neve. Até aí nada de mau. Entretanto, apareceu um filme interpretando os grandes músicos através de representações de desenhos animados. Considerei aquele filme um atentado contra a sensibilidade a personalidade de quantos o assistiram. Pois se em literatura o leitor deve colaborar com o outro na maneira pessoal de configurar personagens e ambientes, o que não diremos da música? Como forçar a todos, como violentar os temperamentos e as personalidades, oferecendo interpretações visuais impositivas à música de Bach, de Beethoven, de Schubert? A música é a mais indefinível, a mais universal, e a mais sugestiva das artes. Ouvindo-a, ainda que tenhamos conhecimento da interpretação que lhe deu o autor ou os críticos, nós ainda encontramos margem para novas criações interpretativas, de cunho essencialmente pessoal. Como obrigar-nos a ver o que o desenhista viu, segundo as suas possibilidades interpretativas?
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Mas não são apenas os desenhos animados. Temos os próprios filmes cinematográficos. Os tipos de vida, de costumes, de pessoas que ali aparecem são feitos à maneira de formas, onde se devem despejar as disponibilidades humanas fundindo-se os caracteres e tornando todos os habitués, todos os vassalos de Hollywood, em indivíduos iguais uns aos outros… A propaganda que se faz dos artistas é ainda mais impositiva na desconformação dos caracteres. Menina ou menino cinemeiro é um ser que perde cada dia mais a sua personalidade. Não são eles que vivem, são os artistas que vivem neles.
Cumpre ainda notar o efeito produzido nos cérebros adolescentes pelos espetáculos muito amiúde assistidos. É sabido que tudo quanto vemos, ou ouvimos, fica durante algum tempo vibrando em nosso cérebro. Chamamos a isso impressão, e a impressão não é mais do que um prolongamento da sensação e principalmente da emoção, exigindo um dispêndio de energia cerebral. Ora, como pode um cérebro, na idade dos estudos primários, ou secundários, gastar mais do que pode, psicológica e fisiologicamente? Sabendo-se que as impressões mais fortes são as dominantes, segue-se que a recordação dos filmes ocupa mais as reservas de energia cerebral do que a preocupação dos estudos. Temos, pois, um cérebro em déficit. Essa a razão pela qual um ginasiano de hoje sabe menos do que um aluno de curso primário no tempo em que não havia cinema. Tenho visto estudantes de curso superior incapazes de redigir, já não digo um artigo, mas uma carta. Nada mais natural, pois para alguém escrever, é preciso ler muito, e os quadrinhos das revistas e jornais na infância, o cinema, finalmente os títulos berrantes das manchetes dos jornais, desacostumaram inteiramente esse moço ou moça de ler. Nada lendo, nada escrevem.
Além do cinema, que deixou de ser uma simples diversão para se tornar um vício, temos hoje um sem número de prazeres — as praias, o futebol, os clubes dançantes, o excursionismo, etc. — que distraem completamente os jovens, afastando-os do estudo e da leitura.
Essa, certamente, constitui uma das razões da decadência intelectual das mais recentes gerações, embora outras existam.
Não podemos deixar de mencionar os ambientes do lar e da própria escola. No lar, os meninos e os mocinhos não encontram atmosfera que os estimule às atividades mentais superiores. Os pais também não leem, senão as paginas dos crimes sensacionais que a imprensa publica com grandes títulos, ou as revistas elegantes repletas de fotografias e páginas coloridas. As conversações tratam ou de negócios ou de vida social. As mais das vezes não há conversação nem em família nem quando chegam visitas.
Não havendo o que conversar, joga-se, o que é sinal irretorquível de decadência, como observou Catarina II, imperatriz da Rússia. Essa princesa alemã, que veio a ser um dos maiores estadistas do seu tempo, observou, quando chegou à Capital dos Tsares, que na corte muito se jogava, para encobrir a incapacidade de conversar, o que exige certa cultura. E foi uma das suas iniciais preocupações substituir o baralho pelo livro e pela arte de bem conversar.
De tempos a esta parte, veio a televisão. Poderia ser o mais decisivo instrumento educacional e cultural. Infelizmente não o é. Após o seu advento, as visitas aos amigos tornaram-se a coisa mais enfadonha do mundo. Os visitantes chegam, a família está no escuro, diante do aparelho televisor. Passam desenhos animados, passam anúncios sobre anúncios, passam comediazinhas pífias, e visitantes e visitados guardam profundo silêncio. Corre assim uma hora, corre outra, não raro mais outra. Finalmente, os visitantes se levantam, despedem-se. Nada se falou.
Em tais ambientes, como podem as crianças e os jovens se interessar por assuntos literários ou científicos? Como podem formar a sua consciência de moral e de civismo?
Civismo? Isso então é o que mais desaprendem os moços, porque o que o rádio e a televisão oferecem relativo à coisa pública são as intrigas políticas, os comentários de cronistas e os discursos e entrevistas de cabos eleitorais.
E o ambiente da escola? Temos duas categorias de professores: os idealistas, que se desesperam diante da inacessibilidade dos alunos às solicitações superiores, e os comercializadores do ensino, vendedores de aulas, sem amor à profissão que, deveria ser por todos os mestres tomada como um sacerdócio.
Sem amor aos livros, estudando para conseguir um “meio de vida”, ou melhor um meio de faturamento arranjar bom emprego, os alunos tratam de mastigar os programas sem lhes tomar o gosto. E os programas? São enormes, tumefatos, espessos, pesados como chumbo. Dada a sua extensão, os professores nunca os terminam no transcurso de uma no letivo. Assim, o aluno não forma uma ideia geral da matéria. Dela tomou um pedaço aqui, outro acolá, sem apreender sequer o espírito da ciência ou da arte que se lhe propôs. No fim do ano é promovida. Não palmilhou a estrada; foi aos pulos. Nada conhece do que ficou para trás e nada conhecerá do que vier adiante.
Três matérias essenciais — a aritmética, a geografia e a língua vernácula — são geralmente ignoradas pelos nossos jovens dos cursos secundários ou superiores. Uns estudam trigonometria sem saber operar com frações ordinárias, outros estudam literatura sem saber redigir uma carta, outros estudam direito sem nada conhecer de lógica ou de história. E esse quadro geral é o que se nos apresenta em nosso país.
Para onde iremos nesse caminho? Que homens estamos preparando para continuar o Brasil?
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Muitas considerações poderíamos fazer sobre este magno assunto. Limitamo-nos a erguer uma ponta do véu que desvenda o mistério da incapacidade geral da chamada massa coletiva, a decadência intelectual cada vez mais acentuada em todos os países e a desordem do mundo, onde imperam os agentes espertíssimos, implantadores de uma nova forma de vida social constituída de homens e mulheres-máquinas, verdadeiros Frankensteins, bonecos sem vontade, sem imaginação, sem raciocínio.
É o mais terrível dos totalitarismos desta época de degradação do gênero humano.