Ouvimos frequentemente repetir, em face do que nos revela todos os dias o noticiário dos jornais, a frase tornada estribilho em todas as bocas: “está em perigo a civilização ocidental”.

Dizer “civilização ocidental” é empregar a expressão exata, uma vez que impróprio seria usarmos a fórmula, por tantos ainda preferida, mas já de todo inadequada, que nos fala de uma “civilização cristã”.

É verdade que perduram, mais por hábito do que por convicção, no conjunto da vida social do ocidente, certos princípios morais cujas raízes se embebem naquilo que em arquitetura se convencionou chamar os “simples”, ou seja, a armação de madeira a sustentar abóbadas em construção. Essa louvada e cantada “civilização ocidental” nem se acha ainda construída ao gosto dos seus arquitetos, e já oferece mostras de insubsistência, prenunciando fatal desabamento.

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Recorrem os construtores a toda sorte de expedientes, contrapondo ao arcabouço do edifício os arcobotantes que o flanqueiam no esforço de o sustentar de pé; mas tais anteparos, que firmam seus alicerces na Economia, ou na Diplomacia, ou no Armamentismo, esses mesmos não encontram terreno consolidado e capaz de os manter.

São planos econômico-financeiros de restauração da vitalidade, de estímulo à produtividade, de reerguimento do padrão de existência nos países em crise, onde o desespero das turbas serve de instrumento aos agentes corrosivos das estruturas sociais; e são, também, medidas preventivas, de ordem política, tentando opor, na ordem interna das nacionalidades, um dique à preamar das agitações extremistas; e são, ainda, no convívio internacional, os pactos, ou convênios, as alianças, todo o angustioso esforço dos governos e dos seus porta-vozes, no afã de conjurar iminentes conflitos, na tristíssima esperança de pelo menos, adiar, enquanto for possível, a derrocada de um sistema constantemente ameaçado.

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Periclita a civilização ocidental. E periclita justamente porque sobre areia tem sido edificada. É uma civilização puramente técnica e baseada no individualismo, que exclui toda a consideração do homem integral, ou simplesmente do Homem (pois esta palavra tem perdido de tal forma o seu sentido que necessita ser adjetivada…).

Sendo uma civilização essencialmente técnica, adstringe-se, no que toca ao Homem, ao critério das especializações profissionais, que consulta apenas uma das faces da personalidade, excluindo todos os elementos culturais não concernentes ao objeto da preparação especializada; dessa forma, fabrica, em série, médicos, engenheiros, advogados, farmacêuticos, agrônomos, mecânicos e eletrotécnicos, economistas, arquitetos, músicos, pintores e escultores, mas não constrói homens.

A sociedade está enferma, desorganiza-se e agoniza, porque os homens, que são os seus elementos constitutivos básicos, desaparecem da superfície da terra… No lugar dos homens, aparecem os profissionais. E o profissional desconhece tudo o que diz respeito ao Homem. Nada sabe do Homem, da sua origem, da sua natureza, do seu destino, das suas justas aspirações materiais, intelectuais e morais, dos seus deveres e dos seus direitos.

Sendo uma civilização individualista, prepara o mundo para o coletivismo, isto é, para a anulação total da personalidade humana. O coletivismo só é possível quando tem, para utilizar a sua matéria prima. E a matéria-prima do coletivismo é a massa, e não o povo, pois a massa é um conjunto informe de indivíduos, enquanto o povo é um conjunto de pessoas, independentes e harmoniosamente dispostas, executando suas atividades próprias, todas tendentes àquele objetivo do Bem Comum que a cada componente da associação humana particularmente favorece, no sentido de alcançar o seu próprio objetivo.

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Já comparei (e não encontro outra imagem mais expressiva) a sociedade humana às espigas de um trigal. Cada grão se integra na espiga a que pertence, como cada homem nos seus grupos naturais. O conjunto das espigas forma a touceira, como o conjunto dos grupos naturais forma a sociedade local. Multiplicam-se as touceiras e formam o trigal, do mesmo modo como a multiplicidade dos grupos naturais forma a Nação, ou a comunidade humana diferenciada de outras comunidades humanas. E o conjunto de todas essas comunidades humanas nacionais constitui a sociedade internacional, ou a Humanidade. Cada grão de trigo traz consigo a fonte vital de um outro pé de trigo; germinando produzirá uma touceira, que poderá ser origem indefinida de imensos trigais; assim, cada homem, conquanto unido a outros, se conserva a sua personalidade, a sua integralidade, é maravilhoso instrumento de criação divina e, ele próprio, nos limites que lhe são assinalados, é sujeito do verbo criar, esse verbo que ele conjuga segundo os tempos e modos que podemos denominar: inteligência, sensibilidade, temperamento, vocação.

Íntegro, isto é, “pessoa” e não “indivíduo”, o Homem (e não parte de Homem) ao mesmo tempo que continua autônomo, independente, capaz de viver por si mesmo, e, como o grão de trigo, capaz de germinar e renascer, também percebe, de modo claro, o sentido de vida social, baseado no conhecimento dos outros homens; em cada qual ele vê aquilo mesmo que sente em si próprio. “O homem se sente pessoa” — escreve Gonella — “quando, transcendendo o eu empírico, isto é, a individualidade, tem consciência do seu ser substancial e sente em si o outro. A vida dos outros é vida sua, porque é vida do Homem. As coisas, ao contrário, têm uma vida petrificada: vivem na solitude”.

O individualismo, portanto, da chamada “civilização ocidental”, deixando de tomar o Homem na sua integridade, prepara a matéria-prima com que o coletivismo constrói o seu ídolo: a massa. Pois, do mesmo modo como não se pode fabricar bolo sem a massa do cereal, nem se pode produzir a massa sem a destruição dos grãos que, pulverizados, já não podem germinar, nem compor a espiga que forma a touceira (a qual, por sua vez, junto a outras, constitui o trigal), também o coletivismo não consegue erigir o seu Estado despótico, sem substituir o povo pela massa popular, pulverizando as personalidades humanas na mó do individualismo.

Ora, toda a obra de formação cultural da juventude, desde as reformas universitárias do século XVIII, das quais sentimos os efeitos na História Brasileira após a transformação da Universidade de Coimbra pela ditadura de Pombal, vem gradativamente cingindo-se ao critério unilateral do preparo de homens incompletos, talvez profissionalmente capazes, mas humanamente atrofiados.

Se, sob o aspecto particular, o ensino tem sido puramente técnico, se no sentido da especialização profissional, sob o aspecto geral, vem sendo essencialmente individualista e escandalosamente utilitário, tomando-se esta palavra na acepção dos interesses materiais e egoísticos mais grosseiros. O homem que conquista um título de habilitação chamado superior, fá-lo como quem compra um instrumento de ganhar dinheiro, sem pretender nem julgar preciso dar às suas atividades profissionais um caráter social. A compreensão da necessidade da troca de benefícios entre o Homem e os seus semelhantes, entre o Homem e a comunidade de que faz parte, entre o Homem e a Nação a que pertence, não é absolutamente possível nas mentalidades individualistas, que não sabem conceber o que seja “pessoa”, sujeito de direitos e deveres, cujo conceito transcende da concepção meramente profissional da existência.

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O utilitarismo, que constitui a nota predominante da vida econômica, política e social do século XIX e que continua a inspirar o mundo em nosso século, tendo inicialmente uma base empírica e, posteriormente, uma base dita científica mas profundamente materialista, degenerou, afinal, em egoísmo feroz de caráter antissocial, que destrói todas as resistências de uma civilização edificada sobre a areia.

Assistimos ao espetáculo doloroso de uma multidão de personagens delirantes: advogados trapaceiros, médicos infanticidas, químicos falsificadores, funcionários desonestos, políticos sem escrúpulos, toda a casta de profissionais visando lucros imediatos, e todos alheios aos supremos interesses do Bem Comum, da Pátria e da Humanidade.

A preocupação pelo dinheiro que deve ser ganho o mais depressa possível, a ânsia pelas posições financeiras ou governamentais, o êxito rápido na carreira abraçada, correndo paralelamente à sofreguidão pelos prazeres, pelos confortos, pelo luxo ostentoso, pela sensualidade carnal, pelas sensações do jogo, e tudo com o mais desdenhoso desprezo às normas éticas e aos mínimos escrúpulos de consciência – esse é o panorama da vida moderna, dessa civilização que, tendo perdido a força moral para enfrentar os novos hunos, que apontam ao oriente da Europa (dispostos a substituir, por outra mentira, a impudente falsidade de uma estrutura social iníqua), apela, hoje para o pretexto, com que se apresenta, dizendo defender a civilização cristã.

O comunismo totalitário, esmagador da liberdade, avança dominadoramente trazendo já atrelados ao seu carro países outrora independentes e ciosos da sua dignidade, como a Polônia, a Alemanha Oriental, a Boêmia, a Eslováquia, a Letônia, a Estônia, a Lituânia, a Bulgária, a Romênia, a Hungria, a Iugoslávia, o norte da Coreia e a China. Em igual perigo se encontram os pedaços do que resta da Alemanha, a França desorientada pelos excessos de intelectualismo, a Itália confusa e o Japão ocidentalizado pelo agnosticismo científico do século XIX e agora pelo agnosticismo político superveniente da catástrofe. As Américas, sentindo já na sua carne viva arder o vírus da desordem, pretendem erguer-se para se salvarem, salvando, se possível, as demais Nações. Mas verificamos que os remédios prescritos pelo Novo Mundo não são, nem podem ser eficazes, uma vez que não passam de medicação meramente sintomática.

Como combater o comunismo, ou outros erros do nosso tempo, se não lhes vamos às causas? De que valem planos econômicos, ou pactos internacionais, medidas legais internas ou vigilância contra a ação imediata da desordem, se o mal do mundo não está no comunismo, nem na anarquia social, mas na mais terrível das ausências, que é a ausência do Homem sobre a terra?

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O Homem desapareceu. As multidões que vemos são de indivíduos, ou apenas partes do Homem, sombras, espectros do Homem. Acima desses fantasmas delirantes, domina a Economia sem finalidade ética, a Ciência sem alma, a Arte sem beleza, a Política sem deveres, a Liberdade sem limites, o Prazer sem freios, o Dinheiro sem contraste, a Sociedade sem ordem.

O rei da Criação foi destronado, perdeu cetro e coroa jogados na aventura materialista pelo seu próprio orgulho. E a solução única para o problema humano, que se apresenta hoje como uma gravidade sem precedentes na História, cifra-se nesta operação da qual depende a sorte das Nações: Reconstruir o Homem.

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Reconstruir o Homem é levar o próprio Homem a reconquistar-se. É instruí-lo a fim de que se restaure, se refaça, e venha a ocupar o seu trono perdido. Essa é a grande Cruzada dos tempos modernos. O grande movimento que terá de partir da verdadeira Universidade. E quando digo verdadeira quero dizer a Universidade que veja no Homem aquela unidade substancial de uma dualidade consubstancial, aquela síntese de necessidades e aspirações consoantes à natureza física, à sensibilidade estética, ao poder da razão, à força imaginativa, à capacidade volitiva, à índole social, à vocação divina.

O ensino, então, objetivará produzir, não apenas profissionais, mas Homens. Será instrução e educação. Da sua forja não sairão os bonecos de carne dos períodos históricos do desespero, a edificar automaticamente um civilização afinalista, uma civilização que, fazendo de si mesma o seu fim, não passa, bem considerada, de uma totalitarismo mais feroz do que o próprio totalitarismo político que se exprime no Estado absorvente. Pois tudo aquilo que se ergue na terra sem que tenha por fim servir ao Homem e ao seu destino último que é Deus, será violência contra o Homem, opressão e degradação do Homem.

A civilização dos nossos dias, agnóstica, utilitária e tecnicista; essa civilização idólatra, cada dia mais embevecida na adoração do seus deuses de aço e das potências despertadas nos meandros da matéria; essa civilização, que transforma a “pessoa” em “indivíduo”, tomando do Homem apenas os seus fragmentos; essa civilização guarda, inconfessado e tenebroso, o princípio catastrófico de um totalitarismo, o qual, à maneira dos icebergs, emergem aqui ou ali, as suas pontas reveladores, sob as formas do nazismo, ou do comunismo, do capitalismo ou do liberalismo.

E será inútil todo o esforço humano tendente a conjurar tais perigos, se não formos ao âmago da questão, dando um sentido espiritual, uma direção para Deus, a todo o trabalho dos cientistas, dos estadistas, nas suas atividades criadoras.

Lançar no mundo o Homem Novo dos Tempos Novos. Retornar ao equilíbrio, depois da fantasia delirante do Super-Homem nietzscheano e das visões degradantes dos Sub-Homens marxistas; depois do ser amorfo, de alma congelada, do agnosticismo liberal, e do monstruoso Frankenstein centaurizado à justaposição das máquinas a que adere como peça adequada ao ritmo das propulsões elétricas ou mecânicas.

Reconduzir o Homem àquele esplendor das Harmonias Divinas, em que ele exerce a sua integral soberania, impondo a força dos valores morais onde pretendam imperar as forças bárbaras e desconexas dos valores materiais em conflituosa desordem.

Ou fazemos isso, ou o mundo não terá salvação. Porque isso fazer é traduzir em normas sociais, nacionais, familiares e pessoais, tudo quanto nos ensinou Aquele por cuja Graça logramos alcançar os verdadeiros padrões de vida digna, de paz fecunda entre os povos, de verdade, de justiça e de beleza.