Estamos habituados, cada vez que pretendemos verberar os costumes sensuais do nosso tempo, a dizer que tudo que aí anda desfibrando os caráteres, corroendo a sociedade e destruindo os fundamentos cristãos das famílias e da Pátria, decorre do predomínio dos instintos.
É erguer-se uma voz com intuitos moralizadores, e lá vem a frase infalível: precisamos fazer predominar a Inteligência sobre os instintos. Em suma: sobre estes se descarregam todas as culpas. A nobre e bela Inteligência merece invariavelmente o respeito dos moralistas, que já se habituaram a considerá-la como verdadeira mártir de todas as inquietações, de todas as melancolias, de todas as revoltas, de todos os desesperos, no seu esforço por atingir os mistérios do mundo e da vida.
Nós estamos sempre inclinados a perdoar as atitudes da Inteligência, nunca porém aos impulsos desarrazoados dos instintos. De um homem ruim dizemos que é escravo dos instintos. De um homem bom afirmamos que vive segundo os ditames da Inteligência.
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Este julgamento é bastante cômodo, mas não corresponde à verdade. Por ele, nós tiramos do Ser Humano as suas culpas e, de certa forma, acusamos a Deus, que foi quem dotou tanto os animais como os homens de instintos intimamente ligados à economia vital.
Se culpa existe a ser atribuída a alguma força, a algum poder, pela degradação do Homem, essa culpa deve caber exclusivamente ao exercício da faculdades de imaginação, de raciocínio e de volição inerentes à inteligência, isto é, sem adesão plena das faculdades intelectuais, não constitui nenhum crime ou pecado. A grande responsável, por conseguinte, pelas desgraças contemporâneas, como pelas de todos os tempos, é a própria inteligência Humana, desviada, como plenitude de conhecimento do Bem e da Beleza, que constituem as duas expressões da Verdade.
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Os instintos são forças permanentes a sustentar e a defender a integralidade do ser vivo e a continuidade da espécie. Os animais irracionais regem-se por eles, exclusivamente, e do equilíbrio das ações e reações instintivas resulta-lhes o próprio equilíbrio vital. Excetuando o instinto fundamental, que marca o próprio caráter de cada uma dessas espécies, nenhum outro exorbita sobre os demais; cada um vai até certo ponto e nunca excede os limites que lhe são próprios, uma vez que todo o excesso redundaria em mortal desarmonia à vitalidade do indivíduo e da própria espécie.
Os animais irracionais, por conseguinte, não pecam, não praticam nenhum crime, porque faltando-lhes a Inteligência, falta-lhes a liberdade, faltando-lhes a Liberdade, falta-lhes a Responsabilidade. Ao Homem é que incube defender-se contra o instinto agressivo dos brutos, quando este instinto se manifesta nas tão variadas formas que parecem terem sido permitidas pela Providência para que em cada uma delas o Ser Racional pudesse ver as diversas faces das suas próprias paixões, as quais não são outras coisas senão a hipertrofia de um dos instintos humanos.
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A covardia da hiena, a ferocidade do leão, a ardilosidade traiçoeira do tigre, o impudor do macaco, a perfídia da serpente, a gula do porco, a avareza da formiga, a preguiça dos tardígrados, a vaidade do pavão, serve tudo a exprimir o que seríamos se deixássemos em nós predominar tão excessiva prudência que nos tornássemos covardes; tão exagerado rigor que nos fizesse ferozes; tão sagaz egoísmo que nos levasse à traição; tamanha sensualidade que nos conduzisse ao relaxamento impudico dos símios; tal sutileza defensiva e agressiva que nos transformasse em pérfidos ofídios; tal voracidade que nos suinizasse; tal poupança que por ela terminássemos avarentos; tamanho gosto ao descanso que nos entregássemos à moleza e à inércia; tamanho prazer de nos exibirmos que terminássemos pavoneando vaidades estúpidas.
Todos aqueles instintos que, acentuados, marcam e definem cada uma das espécies animais, existem no Ser Humano, de tal forma que, bem orientados pela nossa Inteligência, podem exprimir-se em virtudes, assim como se mal orientados podem manifestar-se em vícios degradantes e destruidores da própria personalidade, que se deve afirmar em harmonioso equilíbrio.
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Ao Homem compete construir-se utilizando-se dessas forças elementares que residem no seu próprio ser. Para isso é dotado de faculdades intelectivas. Possui a razão. Possui a vontade. Pode escolher e pode reagir.
Por conseguinte, os pecados, os crimes do Homem são pecados e crimes da Inteligência. Os instintos no Homem são meros instrumentos que ele utiliza para o Bem ou para o Mal. O agente responsável é a sua inteligência.
Todas as excelências da vida social, como todas as desgraças do mundo, nos âmbitos da Família, da Pátria ou da Sociedade Internacional, procedem da Inteligência. Ela é a grande responsável.
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Quando o professor Voronoff esteve pela primeira vez no Brasil, apresentou-se-lhe um rico fazendeiro a pedir-lhe consulta e tratamento para si e para um magnífico exemplar lanígero, como o dono, avançado em idade. O cientista utilizou em favor de ambos a sua técnica, obtendo resultados francamente lisonjeiros. Decorridos alguns anos, o célebre médico regressou ao nosso país, sendo procurado pelo antigo cliente que lhe dirigiu uma reclamação, dizendo: “O carneiro continua gozando ótima saúde mas eu já não me sinto bem; teria o senhor usado de processo diferente nas operações?”. E Voronoff respondeu-lhe com estas palavras sábias: “Meu amigo, usei do mesmo processo em ambos os casos, mas acontece o seguinte: os carneiros costumam ser mais ajuizados do que os homens e, portanto, não fazem excessos”.
O que o professor poderia ter dito era que os carneiros não possuem a inteligência do Homem, deixando-se guiar pelo natural equilíbrio que a Providência lhe traçou; ao passo que o Homem, sendo inteligente e livre, utiliza-se dos dotes da imaginação e do poder da vontade para entregar-se aos condenáveis excessos. Em suma: o Homem peca pela Inteligência.
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É, pois, a Inteligência um mal? Não; a Inteligência é um bem. É uma prerrogativa que Deus nos outorgou. Ela está intimamente ligada à nossa liberdade. Por ela, podemos imaginar, isto é, criar formas renovadas de ideias e pensamentos; podemos recordar, tornando presentes imagens pretéritas, atualizando sensações passadas, emoções transatas; podemos discernir, julgar, estabelecer conexões entre o eventualmente imaginado e as formas harmoniosas e justas dos pensamentos e dos atos; podemos escolher, optar, decidir; podemos impor regras aos instintos ou libertá-los catastroficamente.
Sem Inteligência não há Liberdade; sem Liberdade não há Responsabilidade; logo, sem Inteligência não há pecado, nem crime, pois estes só os podemos configurar mediante a adesão plena das nossas faculdades superiores.
Podemos, sem receio de erro, afirmar que toda a desordem do mundo provém dos crimes da Inteligência.
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Atribuir sistematicamente aos instintos desenfreados os males individuais e sociais que afligem atualmente as famílias e os povos é adotar as escusas daquele frade que no confessionário declarou haver haver furtado um ovo à comunidade por tentação do demônio. Achando-se perto o demônio, não resistiu a tamanha injustiça e, tomando a palavra, penitente e confessor ouviram esta: “Tenha paciência, irmão; na verdade muito lhe tenho tentado, mas nesse negócio do ovo, juro-lhe pelas barbas de Satanás que não me envolvi”.
A anedota serve a demonstrar como existe no homem a tendência para eximir-se de suas culpas, alegando a impossibilidade de conter imperativos instintos e passando ao largo sobre a parte principal que no caso desempenhou a sua inteligência. Tal atitude vem de tal sorte influindo no senso crítico dos próprios moralistas, que estes, ao promulgar o desregramento dos costumes, omitem as acusações que deveriam pesar sobre a inteligência, como seu poder imaginativo, raciocinante e deliberativo, nos desacertos que fazem da sociedade impiedosa de hoje uma tarândola de loucos.
O homem foi posto no mundo para se construir, segundo as leis do Bem ou segundo as leis do Mal. Para isso possui todas as faculdades necessárias. Os seus instintos podem ser aproveitados num sentido de virtude ou num sentido de vício, pois eles constituem a matéria-prima da personalidade e sobre essa matéria-prima é que trabalha a Inteligência criadora, optativa e ordenadora. Enquanto os irracionais agem segundo o determinismo de leis que Deus lhes traçou, o homem recebeu de Deus o poder de agir por si próprio desde o instante em que, pela glória e força das faculdades superiores, foi feito rei da Criação e rei de si mesmo.
Eis porque — além dos pecados e crimes em que a Inteligência participa dos desvios ou exagerações dos impulsos instintivos — existem os pecados e crimes exclusivamente da inteligência, aqueles em que os instintos quase nada ou nada interferem.
São os mais hediondos, os mais cruéis, os mais terríveis como agentes destruidores das harmonias do mundo moral.
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Os crimes em que participam os instintos e a Inteligência são crimes de homens. Mas os praticados por esta de certa forma se aparecem com os perpetrados pelos Anjos Rebeldes. São crimes demoníacos. A sua origem mais profunda é o orgulho. As suas atitudes prediletas são bem conhecidas; é a dúvida deliberada alimentada, estipulada e até sistematizada; é o ceticismo sardônico; é a complicação, a sutilização dos conceitos mais simples, das realidades mais evidentes; é a negação, que em última análise constitui a plena maturidade da dúvida, do ceticismo e da sutileza intelectual; é a rebeldia, filha primogênita da negação; é o sofisma, a desenvolver a sua anti-lógica na sustentação da rebeldia; é o ódio a toda ordem contra cuja inexpugnabilidade se levanta a impotência de todas as ordens ideais engendradas por elucubrações estéreis; é, finalmente, o desespero catastrófico no qual se consome o Espírito já então desamparado de luz e inspiração da Graça.
“Sim, somos pecadores” — dizia um príncipe ibérico a um sutil reformador gaulês — “pecamos muitas vezes pelas fraquezas do nosso corpo; mas vós, que vos dizeis puros e nos acusais de prevaricadores, pecais pelo orgulho da vossa inteligência; o vosso pecado é exclusivamente da alma. Nossos pecados são de homens, os vossos são de anjos rebeldes”.
Creio que não se poderá definir melhor os crimes da Inteligência.
Pela Inteligência, o Homem se eleva, porém se não se elevar com espírito de humildade e de simplicidade, perderá o equilíbrio e rolará na treva. O Orco, descrito por Milton e evidenciado nos quadros dantescos da Divina Comédia, é o lugar da dissociação de todos os ritmos harmoniosos; é a confusão, é a anarquia, é a escuridão do caos. É o destino de toda Inteligência que confiou em si mesmo e fez do seu orgulho uma resistência contra Deus.
Fato curioso: pela Inteligência o Homem se liberta da desordem dos instintos e sobre estes impondo o seu domínio, atinge pouco a pouco os graus mais altos da perfeição; mas se levar consigo o sentimento da própria suficiência, o Homem, pelas suas próprias faculdades intelectivas, reconduz-se à escravidão dos instintos.
Ninguém melhor do que São Paulo, na sua Epístola aos Romanos, descreve esse pavoroso drama da Inteligência Humana, em face das depravações dominantes na Cidade dos Césares cuja origem provinha da atitude intelectual dos homens que, “arrogando-se o nome de sábios, fizeram-se estultos”. Perderam dessa maneira toda a capacidade para discernir os princípios da verdadeira moral e, mediante uma concepção do mundo e da vida engendrada por suas próprias cabeças, concederam, dia a dia, aos instintos, todos os poderes e afundaram no abismo de todas as perversões.
O que se passou com os Romanos, segundo a Epístola de São Paulo, é o que se passa em todas as épocas e países, quando os intelectuais se enchem de orgulho, emaranham-se em sutilezas, entenebrecem-se em melancolias decadentes, consomem-se em ódios e desesperos e de tal forma deturpam as verdades mais simples, que estas jazem nas suas mãos como aquela mosca azul do poema de Machado de Assis, espostejada e sangrenta.
Esses intelectuais tornaram-se ao mesmo tempo trágicos e ridículos. Trágicos pelos efeitos que produzem no meio social em que vivem, envenenando a mocidade, a si mesmos se intoxicando, implantando a confusão nas horas decisiva em que mais se precisa de clarificar ideias e pensamentos. E ridículos, pelas atitudes que assumem, julgando-se portadores de grandes descobertas, inventores de imensas filosofias, de sistemas que imaginam eternos e que afinal não passam de meros cartazes a atrair espíritos desocupados e a fornecer temas de conversações a esnobes liberalizantes, a uma granfinagem mental de papalvos e ignaros que pavoneiam as suas importâncias pelos suplementos dominicais dos grandes diários.
O mundo está hoje cheio desses empatadores de toda ação generosa e eficaz dos espíritos humildes e simples, batalhadores pelo Bem e pela Beleza da Vida. São os grandes criminosos, que em todos os séculos aparecem, passeando as suas vazias pessoas no meio das angústias do seu tempo. As suas características e categorias são variadas, porém todas redutíveis a um aspecto geral: o orgulho.