A nota predominante da alocução de Natal do Papa Pio XII, ao findar o ano de 1952, é incontestavelmente a referência que faz à inutilidade dos esforços humanos quando pretendem resolver os problemas atuais do mundo mediante esquemas de organizações, que se reduzem, afinal, a uma aparelhagem mecânica de burocracia sem alma.
Na verdade, desde que terminou a última guerra, temos visto os responsáveis pela ordem internacional, e pela ordem interna em cada país, estabelecer planos econômicos, engrenagens burocráticas, tipos de organizações as mais variadas, reformas de estrutura dos serviços já existentes, sem que até agora se tenha chegado a um resultado satisfatório.
Dentro de cada país, a situação não se apresenta mais promissora no que se refere à solução das numerosas questões administrativas, que envolvem outras tantas de caráter econômico e financeiro. Nos casos em que o governo está baseado no sistema parlamentar, não podemos atribuir à mudança freqüente dos ministérios a impossibilidade de uma ação uniforme e contínua, porquanto os grandes temas da administração pública passam de um para outro gabinete, exigindo o desenvolvimento da ação já iniciada; mas podemos atribuir as dificuldades administrativas ao fato de se comporem os ministérios parlamentares de elementos oriundos de diversos partidos, cada qual com sua orientação e seus interesses próprios. Na verdade, as mais das vezes, para se obter maioria parlamentar, é preciso compor um gabinete eclético, do tipo dos governos de concentração. Mas hoje, nos países como o Brasil, onde numerosos são os partidos, o sistema presidencial também sofre os efeitos da disparidade de opiniões e de critérios dominantes no conjunto ministerial.
O problema, pois, que se coloca, no caso brasileiro, não é, portanto, um problema de estrutura administrativa, mas sim de orientação administrativa.
Visando atender a compensações em troca de apoio parlamentar, o presidencialismo brasileiro pratica uma política de puro parlamentarismo, distribuindo as diferentes pastas pelas correntes mais expressivas do eleitorado nacional. E, muitas vezes, a compensação não visa apenas os partidos, mas as facções que lutam entre si no próprio seio dos partidos. Dessa forma, não se torna impossível que dois altos auxiliares do governo, no mesmo setor da economia e das finanças, se desavenham, pelo contraste de orientação em face de determinado assunto.
Com o louvável empenho de reajustar a máquina admi-nistrativa às novas condições do país, sugere a Presidência da República uma reforma tendendo a separar certos serviços públicos, a ampliar a área de ação de outros, a unificar e subme-ter a uma direção única certos setores onde florescem (ou definham) órgãos esparsos e interindependentes.
Merece todo o respeito o intuito governamental, mas é ocasião de ponderarmos que a simples reforma de estrutura não logrará atingir os resultados almejados.
O de que necessitamos no Brasil, antes de tudo, é de uma definição clara, nítida, pública de rumos, aos quais se devem subordinar todos os componentes de um governo nacional.
Não existe nenhuma questão de interesse vital de um país que não esteja ligada a todas as outras. Uma Nação é como um corpo humano: um conjunto de órgãos e de tecidos e células, todos relacionados entre si e todos tendentes à manutenção do indivíduo. Isso nos leva a concluir que uma Nação não se pode governar sem um planejamento que abranja, ao mesmo tempo, o conjunto dos problemas e que esteja atento aos pormenores e às peculiaridades de cada um no sentido da unidade da solução global.
Que adiantará termos muitos ministérios, possuirmos uma aparelhagem perfeita do ponto de vista burocrático, se cada um desses ministérios se divorciar dos outros na objetivação de uma finalidade comum? Para que tal não se dê, é preciso que, preliminarmente, se estabeleçam as bases da administração pública, firmando princípios, traçando um planejamento e distribuindo os papéis que tocam a cada um dos executores do pensamento central.
Mas essa é apenas a primeira das condições para o exercício de um bom governo. Porque existe uma segunda, que diz respeito ao material humano a empregar-se na execução dos planos a que atrás nos referimos. E essa segunda condição é essencial.
Falando dela, volvemos às considerações de Pio XII, no seu discurso de Natal. E diremos que o de que o Brasil mais precisa não é de reformas administrativas (conquanto estas sejam necessárias) mas de reformas de homens.
Temos atingido a tal ponto de desmoralização nas reparações públicas e, principalmente, nos altos cargos públicos, que já não será inadequado compararmos o Brasil com a China, no período anterior à dominação russa. As negociatas proliferam, a gorjeta tornou-se um hábito, desde os pequenos funcionários até aos seus chefes e aos políticos de maior evidência. Compra-se e vende-se tudo: nomeações, comissões, promoções, transferencias, despachos em requerimentos, autorizações para negócios, serviços de empreitadas e o mais que houver. As percentagens sobre contratos, os ágios sobre financiamentos, as propinas sobre favores aparentemente legais, tornaram-se tão vulgares entre nós, que ninguém se escandaliza diante de fortunas feitas da noite para o dia com grandes arrotos de importância e largas exibições de poder argentino. Compram-se e vendem-se votos parlamentares e votos eleitorais nas ocasiões dos pleitos. Compram-se até legendas de partidos e renúncias de vereadores, deputados, até de senadores, lançando-se no mercado de consciências a barganha de cargos numa traficância de ciganos em feira de cavalos. Não há homens de mediano senso de honradez que não diga nas conversas amargas a frase que já se tornou comum: “está tudo desmoralizado e não sabemos para onde vamos neste caminho”.
O momento nacional exige, pois, uma verdadeira revolução nos costumes. Sem ela, não teremos homens dignos. Sem homens dignos não teremos administração honesta, de nada valendo nem novas estruturas nem mesmo os planos governamentais por mais belos que sejam.
Essa revolução dos costumes baseia-se numa concepção espiritualista da existência. Pois estamos materializados, ao extremo. Caímos no egoísmo mais feroz e no comodismo mais grosseiro. Perdemos a noção dos altos ideais. As palavras Deus e Pátria soam como sinos rachados, sem som capaz de despertar os adormecidos, os letargiados no epicurismo de uma vida cuja finalidade é satisfazer os apetites da ambição, da sensualidade, do exibicionismo.
Ou fazemos essa revolução nos costumes, ou de nada valerão os esforços do Governo e dos homens de Estado empenhados em elevar o Brasil e engrandecê-lo.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: Atualidades Brasileiras, Obras Completas, Vol. 16, pág. 373.