O Manifesto de Outubro de 1932

II

Vimos, no capitulo precedente, a ambientação histórica do Manifesto de Outubro de 1932. Cumpre-nos, agora, examinar os seus fundamentos doutrinários.

Antes de tudo, convém ter-se em vista que aquele documento político, pretendendo trazer o remédio imediato à crise social brasileira e ao problema humano que se propunha a todos os povos, como consequência de ideologias que se entrechocavam, consubstanciou, não apenas uma orientação filosófica, mas também as soluções praticas do problema do Estado e, mais ainda, o programa de ação destinado a dar a e propagar as novas ideias e levá-las à vitória.

Sendo, pois, uma exposição complexa de variados assuntos, o Manifesto de Outubro contém uma parte essencial imutável e uma parte acidental sujeita a modificações impostas pelas circunstâncias históricas supervenientes.

A parte essencial do Manifesto conserva-se até hoje intangível; mas conquanto trouxesse, naquele documento, firmes e nítidos lineamentos acerca da concepção do Universo, do Homem, dos Grupos Naturais, da Sociedade, da Nação e do Estado, não ia além das afirmações categóricas a respeito desses temas, deixando para que, em outros documentos e estudos, se desenvolvessem, de modo mais completo, mais preciso e mais claro, as ideias então lançadas como indicações de rumos.

Essa clarificação das ideias fundamentais do Manifesto de Outubro foi realizada em documentos posteriores, como sejam as Diretrizes Integralistas, em 1933; a Carta de Natal e Fim de Ano em 1935; as Preliminares do Manifesto-Programa, em 1936; o capitulo Cristo e o Estado Integral do discurso de 12 de junho de 1937; o Manifesto-Diretiva, de 1945; e ainda em vários documentos constantes do livro “O Integralismo perante a Nação”.

Paralelamente a esses documentos, considerados oficiais do Integralismo, publicaram-se os meus livros: “Psicologia da Revolução”, melhorado no sentido de maior clareza, em sucessivas edições; “Conceito Cristão da Democracia”; o capitulo “Cristo e César” do livro “Vida de Jesus”; “Discursos – 1946” e, finalmente, em “Direitos e Deveres do Homem”, que é o desenvolvimento da tese que apresentei nas Conversações Internacionais Católicas de San Sebastian, em 1948; “Espírito da Burguesia”; “A Mulher no século XX”; “O Ritmo da História”; “Reconstrução do Homem”.

Excluindo-se, pois, das nossas considerações, as acidentalidades do Manifesto de Outubro, que se referiam a circunstâncias inerentes ao momento histórico em que os seus capítulos foram escritos, apreciemos a substancia do documento que conseguiu mobilizar centenas de milhares de brasileiros no transcurso de 1932 a 1937.

O Manifesto de Outubro, conquanto obra pessoal onde predominam três elementos: a formação espiritualista, a educação nacionalista e a intuição do seu autor, embebe as suas raízes nos ensinamentos dos grandes pensadores, filósofos, poetas, economistas e sociólogos da nossa Pátria.

O seu Capitulo 1º trata da concepção do universo e do Homem. E aí se encontra a influência de Farias Brito quando, no seu livro “A verdade como regra das ações”, mostra que não podem existir normas de moralidade, sem que preliminarmente adotemos uma noção precisa da origem e da finalidade do Ser Humano.

Em consequência da fé espiritualista que o Manifesto proclama, esse capítulo 1º reconduz os valores morais à plana de superioridade de onde foram destronados pelo materialismo do século XIX e princípios do presente. Afirma que a igualdade dos homens deve ser procurada, não mediante a tábua rasa do coletivismo, porém pela hierarquia das virtudes. Sustenta o direito às legítimas aspirações de cada um e de todos, pela prática da fraternidade cristã e da justiça, que emana dos corações à luz de uma consciência conhecedora das leis de Deus.

Essa proclamação de direitos humanos, não segundo o critério agnóstico-naturalista de Rousseau, mas segundo a filiação comum dos homens em Deus, essa proclamação que em 1948 fiz de modo mais lato e explicito no meu livro “Direitos e Deveres do Homem”, surgia no Manifesto de Outubro como consequência de meditações e de angústias, por mim expressas na carta que dirigi a Augusto Frederico Schmidt, em 18 de fevereiro de 1931, em que lhe dizia: “Quero, logo que seja iniciada a minha ação jornalística, proclamar os direitos do Homem. Cento e poucos anos após as declarações da Revolução Francesa, nova proclamação precisa ser erguida na face da terra. Que ela parta do Brasil, como um protesto…”.

O protesto era contra o comunismo e contra o capitalismo, as duas formas do materialismo destruidor das pessoas humanas.

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O Capitulo 2º busca solucionar os conflitos de classe e a exploração do capitalismo ateu, consagrando o principio democrático de representação política dos que trabalham, segundo as suas categorias profissionais. E aí se nota a influência de Oliveira Viana, cujo pensamento, evolvendo de livro para livro, veio recentemente esplender na plenitude de suas últimas obras.

E não podemos deixar de considerar que esse esquema de organização social e política, a que chegarão todos os povos, antes que termine este século, esse esquema, que foi burlado pelo fascismo e traído pelo nazismo e pelo comunismo russo, conforma-se com a própria doutrina dos Sumos Pontífices, desde Pio IX e Leão XIII, até Pio XI e Pio XII, e principalmente com o discurso deste, no Natal de 1944, quando distingue a “Massa” desordenada do “povo” consciente que se exprime através dos seus Grupos Naturais.

No Capitulo 3º sente-se a presença de Jackson de Figueiredo, nas suas campanhas pela restauração do princípio de autoridade, sem a qual a liberdade dos maus, dos traficantes e dos imorais tripudiará sobre os direitos dos bons, dos honestos e virtuosos.

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No Capitulo 4º, percebe-se que o autor está de pleno acordo com Alberto Torres, sentindo as verdades escritas pelo grande fluminense, no seu livro “O problema nacional brasileiro”, onde combate o cosmopolitismo, a nefasta influência estrangeira, assim como os absurdos preconceitos de Raça, que levaram muitos patrícios nossos a amesquinhar os elementos formadores da Nacionalidade e aqueles que vieram, posteriormente, integrar-se na comunhão de nossa Pátria.

Esse capítulo é como que uma projeção das paginas escritas pelo próprio autor do Manifesto no seu romance “O Estrangeiro”, o qual, na verdade, constitui também um manifesto à Nação lançado em 1926 e preparador do Manifesto de Outubro. Pois é preciso ter em vista as obras que publiquei antes e depois de 1932, para se compreender o espírito do meu nacionalismo no documento político que produzi em 1932. Quem não tiver lido “O Estrangeiro”, “O Cavaleiro de Itararé”, “A Voz do Oeste”, “Geografia Sentimental” e “Nosso Brasil”, e posteriormente “Como nasceram as cidades do Brasil” e o “Poema da Fortaleza de Santa Cruz”, não estará apto a penetrar no íntimo da alma de quem escreveu o Manifesto de Outubro.

Nesse Capitulo 4º, palpitante de brasilidade, como que se ouvem os clarins de Olavo Bilac na sua memorável campanha cívica; as vozes de Alencar e de Gonçalves Dias, repetindo os ecos da selva; o clangorar das inúbias na obra de Couto de Magalhães; a simpatia humana de Joaquim Nabuco por aqueles que ele ajudou a libertar da escravidão; o nome orgulho da estirpe lusitana, que ilumina as paginas de Elísio de Carvalho; a alma do sertanejo, presente nos “Sertões” de Euclides da Cunha; o sentido do tradicionalismo, flagrante em Oliveira Lima e em Eduardo Prado; o entusiasmo patriótico do Conde de Afonso Celso.

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O Capitulo 5º está cheio da alma de Caxias, do sentido da Unidade Nacional pela qual lutou o Condestável do Império, do sentimento sempre presente em nossas Forças Armadas, da ordem interna como base da defesa externa. É um pensamento que se ergue contra o excessivo regionalismo, o exclusivismo da política provinciana em detrimento da grande política da nacionalidade.

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No 6º Capitulo, o Manifesto combate frontalmente a confusão ideológica patente nas agitações de 1930-32, as revoluções sem programas, as conspirações sem objetivos doutrinários.

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A questão social desenvolve-se no Capitulo 7º onde se sustenta o direito à propriedade considerada trabalho acumulado e projeção física da personalidade humana e, ao mesmo tempo, as justas reivindicações dos trabalhadores, encarando-se o problema de um modo integral, sob o aspecto moral-cristão, sob o ângulo da organização econômica do país e pela conjugação dos direitos naturais com os deveres que lhes são correlatos. E aí se encontra a doutrina esposada por brasileiros da estirpe de Pandiá Calogeras e Rui Barbosa, que se inspiram, por sua vez, na obra do Cardeal Mercier e nas Encíclicas Papais.

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É, entretanto, no Capítulo 8º — que trata das relações entre a Família e o Estado — onde se encontra a essência da doutrina do Manifesto de Outubro.

Nunca se tinha feito no Brasil, até aquele momento, um combate mais claro ao Estado Totalitário, fosse o comunismo, fosse o nazismo.

A Família é considerada nesse capítulo como a primeira das sociedades humanas, o grupo natural por excelência, entretecido por delicados sentimentos e afetos puros. Os que mais tarde caluniaram o Integralismo como totalitário e inimigo da democracia, deveriam ler esse capítulo, onde há frases como estas: “O Homem não pode transformar-se em uma abelha ou em um térmita. Ele é centro de uma gravidade sentimental. O homem e sua família precederam o Estado”; ou estas: “Tirem a peça funcionando no Estado e teremos o autômato infeliz, rebaixado da sua condição superior”.

Estes pensamentos foram, mais tarde, desenvolvidos em minhas obras posteriores; mas nesse capítulo do Manifesto de Outubro já brilha, de maneira expressiva, a tradição familiar brasileira em toda a sua candidez cristã.

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O municipalismo, ideia hoje triunfante no país, consagra-se no Capítulo 9º. Fundamenta-se nas verdades filosóficas e nas realidades sociolocais que nos apresentam o Municipalismo como reunião de Pessoas Livres e de Famílias autônomas. Sentem-se aí as lições dos constitucionalistas do 1º Império e as observações, na fase republicana, de homens notáveis como Domingos Jaguaribe.

Mas é preciso dizer que a primeira atividade política por mim exercida ao alvorecer dos meus vinte anos, foi uma campanha municipalista. Ajudei a fundar o primeiro partido municipalista que existiu no Brasil e que teve por sede o norte do Estado de São Paulo. As minhas observações de juventude levaram-me a concluir que a famosa autonomia municipal só existia nos textos constitucionais. Os municípios eram subjugados financeiramente e politicamente pelos magnatas do partido único em cada Estado. Esse partido único, que precedeu a invenção fascista ou comunista, intervinha na vida municipal através do aparelhamento da máquina governamental do Estado e os munícipes não gozavam sequer o direito de eleger os seus dirigentes. Valeu-me a experiência dos vinte anos no Partido Municipalista, porque a sua ideia ressurgiu no Manifesto de Outubro, com fundamento filosófico e sociológico.

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O capítulo 10º é a síntese nacionalista do Estado Cristão, o resumo da democracia orgânica. Nele se traçam os grandes lineamentos da expressão e do prestígio internacional da Pátria Brasileira. Vive ali o espírito de Alexandre de Gusmão e do Barão do Rio Branco; os sonhos de D. João Terceiro e do Conde de Bobadela e de D. João VI; a firmeza de José Bonifácio na construção da nossa unidade e da nossa grandeza, a ação de Pedro Segundo e do Duque de Caxias na consolidação desse patrimônio.

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O Manifesto de Outubro, na sua essência, é documento que genealogicamente se prende aos primórdios da Nacionalidade, consubstanciando o pensamento político dos Reis Portugueses das dinastias de Afonso Henriques e do Mestre de Avis, baseado no serviço de Deus e da Nação. A solidariedade humana e os recíprocos direitos e deveres de governantes e governados, realizando-se pela troca de benefícios, como a concebem o Regente D. Pedro em seu livro “Da virtuosa benfeitoria” e El Rei D. Duarte no “Leal Conselheiro”, vem proclamada a cada passo no Manifesto, o que o liga ao espírito jurídico lusitano, que soube unir o sentimento cristão da Idade Média ao humanismo da Renascença, como anteriormente unira as lições do Evangelho aos ensaios de Sêneca, no concernente à permuta de serviços entre os homens, que distingue as sociedades moralmente perfeitas.

A doutrina do Manifesto de Outubro foi — como dissemos, no começo deste estudo — desenvolvida e clarificada, dia a dia. Foram-se expungindo do seu complexo doutrinário-programático e propagandístico, todas as acidentalidades consideradas meramente adjetivas, mantendo-se, porém, intactas, as ideias substanciais.

Ainda aí a sua doutrina — corporificada depois no ideário integralista — manifesta-se coerente, pois desde o inicio concebeu, conforme vem escrito no meu livro “Psicologia da Revolução”, a Sociedade e o Estado como formas de expressão dos Indivíduos e dos Grupos Naturais, estes (Indivíduos e Grupos Naturais) regidos por leis eternas, que vêm de Deus e se consubstanciam no Direito Natural, e aqueles (Sociedade e Estado) pelas normas e estilos vasados segundo a linha móvel da sua adaptação às circunstâncias históricas.

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O Integralismo é doutrina que correlaciona os fenômenos e procura deduzir as soluções particulares da solução geral do problema nacional e humano.

É uma filosofia e um método.

Como filosofia, oferece-nos uma concepção do mundo (espaço, matéria, movimento e tempo) e do Homem (corpo e alma), tudo se originando em Deus e com finalidade traçada pelo Criador.

Como método, considera os fenômenos tanto universais como humanos, correlacionados. Nenhum problema do homem se isola, porque todos os problemas humanos se apresentam interdependentes. Da mesma sorte, a Nação considerada como um todo físico e o espírito grupal diferenciado da comunidade humana, em que se exprimem os grupos naturais e as pessoas em última análise, o próprio homem, também ela, a Nação, não tem problemas isolados, porque a solução de um deles depende da solução de todos contemporaneamente.

Quanto ao Estado — e entra aqui a concepção política do Integralismo —, ele é o instrumento jurídico de que a Nação, no gozo de sua soberania, se utiliza, para o ordenamento interno e a representação externa. E como a Nação é o conjunto dos grupos naturais e das pessoas humanas, o Estado será instrumento inidôneo, inapto e ilegítimo, se ferir a liberdade legítima desses componentes da Nação, ou permitir que, sob o pretexto de uma falsa liberdade, indivíduos, ou grupos de indivíduos, posterguem esses direitos que, em última análise, são os sagrados direitos do Homem.

Essa é a essência da doutrina integralista, de que o Manifesto de Outubro constitui a fonte primeira. Essa doutrina, depois de 25 anos, apresenta-se triunfante na palavra de homens de projeção mundial, como Fulton Sheen e o Padre Lombardi, Arnold Toynbee, Michele Federico Sciacca, Prof. Leo Gabriel (de Viena). E também na de políticos e estadistas, em particular dos Estados Unidos, que somente viram a posteriori os perigos que hoje ameaçam o mundo, os quais foram por nós, integralistas, anunciados, desde 1932, como resultado inevitável da desordem dos espíritos, criada pelo utilitarismo inglês, pelo pragmatismo americano, pelo intelectualismo francês, pelo fanatismo positivista e evolucionista, pelo idealismo e pelo criticismo alemães e seus consequentes efeitos sociais e políticos neste século.

Lendo-se o Manifesto de Outubro, nesta distância de 25 anos da data do seu aparecimento, podemos concluir que o êxito por ele alcançado origina-se da sua profunda espiritualidade, a sua viva brasilidade, a sua exaltação dos valores morais como forças positivas da construção pessoal de cada Homem e da construção nacional da Pátria Brasileira.

Embora a doutrina integralista seja completada posteriormente por outros escritos, o Manifesto de Outubro de 1932 é a primeira manifestação política desse pensamento que até hoje muitos não puderam ou não quiseram compreender, embora outros muitos já lhe façam justiça e já o aceitem e proclamem como fórmula de salvação temporal e política dos homens e das nacionalidades e, de modo particular, do nosso querido Brasil.