Em 18 de dezembro de 1931, em longa missiva que dirigi de São Paulo a Augusto Frederico Schmidt, estudando a situação brasileira e expondo-lhe o meu pensamento sobre o que deveríamos fazer, escrevi as seguintes palavras:

“Quero, logo que seja iniciada a minha ação jornalística, proclamar os direitos do homem. Cento e poucos anos após as declarações da Revolução Francesa, uma nova proclamação precisa erguer-se na face da Terra. Que ela parta do Brasil, como um protesto, que ecoará, principalmente entre os povos meridionais, sem hulha, sem petróleo, sem ferro, sem possibilidades para exercer um imperialismo econômico, mas com enormes possibilidades de exercer uma poderosa influência moral”. [1]

E mais adiante:

“O que urge, neste instante, é uma imediata mobilização de todas as forças morais e espirituais do Brasil.”

E, logo depois:

“Nossa campanha inicial se define: com Deus ou contra Deus.”

Respondendo, Augusto Frederico Schmidt me dizia que mostrara a minha carta a Tristão de Ataíde, o qual muito se entusiasmara com ela, acrescentando, todavia, que, no seu entender, mais necessária naquela hora do mundo era uma proclamação dos Deveres do Homem, e não apenas dos Direitos, como eu dissera.

Expliquei noutra missiva que os Deveres estavam implicitamente contidos nos Direitos, uma vez que estes deixariam de subsistir em relação à Pessoa Humana, se os indivíduos ultrapassassem os limites da sua liberdade.

Em 24 de fevereiro de 1932, no salão nobre do jornal “A Razão”, de São Paulo, conforme relatei no primeiro capítulo deste livro, realizei a primeira reunião de intelectuais paulistas com o fim de fundar a Sociedade de Estudos Políticos, cujo objetivo era polarizar valores mentais e morais dispostos a empreender uma campanha de salvação nacional. Compareceram Ataliba Nogueira, Mota Filho, Mario Graciotti, José de Almeida Camargo, Alpinolo Lopes Casali, José Maria Machado, Francisco Stela, Gabriel Vendoni de Barros, João Leães Sobrinho, Mario Zaroni, Fernando Callage, Iraci Igaiara. Declarei-lhes que, no meio da confusão dos espíritos, que reinava no Brasil, tornava-se necessário, antes de iniciarmos qualquer atividade, estabelecermos alguns pontos pacíficos, isto é, que não admitissem discussão entre nós. Eu já os trazia redigidos. Aqui os reproduzo:

  1. Somos pela Unidade da Nação;
  2. Somos pela expressão de todas as suas forças produtoras no Estado;
  3. Somos pelo princípio da autoridade, desde que esta traduza não somente as forças reais e diretas dos agentes da produção material e intelectual da nacionalidade, mas também a expressão moral do nosso povo;
  4. Somos pela consulta às tradições históricas e às circunstâncias geográficas, econômicas e climáticas que distinguem o nosso país;
  5. Somos por um programa de coordenação de todas as classes produtoras;
  6. Somos por um ideal de justiça humana, que realize o máximo de aproveitamento dos meios de produção em benéfico de todos, sem atentar contra o principio de propriedade, ferido tanto pelo socialismo, como pelo falso democratismo nas expansões que aquele dá à coletividade e este ao indivíduo;
  7. Somos contrários a toda tirania exercida pelo Estado contra o Indivíduo e suas projeções morais; somos contra a tirania de indivíduos contra o Estado e os superiores interesses da Nação;
  8. Somos contrários a todas as doutrinas que pretendam criar privilégios de raças, de classes, de grupos financeiros ou partidários, mantenedores de oligarquias econômicas ou políticas;
  9. Somos pela afirmação do pensamento político brasileiro baseado nas realidades da nossa terra, nas circunstâncias do mundo contemporâneo, nas superiores finalidades do Homem e no aproveitamento das conquistas científicas e técnicas do nosso século.

* * *

Esses princípios foram aceitos por todos, pelo que designei o dia 3 de março para a primeira assembleia em que se devia efetivar definitivamente a fundação da Sociedade, que eu desejava desde logo ligar ao grupo do Rio, cuja primeira reunião fora por mim realizada no Palacete Hotel, com a presença de Madeira de Freitas, Raimundo Padilha, Santiago Dantas, Antonio Galotti, Hélio Vianna, Américo Lacombe, Augusto Frederico Schmidt, Antonio Giudice, Gilson Amado, Chermont de Miranda e outros.

A assembleia de 3 de março de 32 realizou-se no salão das armas do Clube Português, conseguido para tal fim pelo nosso companheiro Eurico Guedes de Araújo. O comparecimento foi de mais de uma centena de pessoas (médicos, advogados, engenheiros, jornalistas, estudantes) aparecendo ali, pela primeira vez, aquele grupo magnífico da Faculdade de Direito, no qual se destacavam Alfredo Buzaid, Antonio de Toledo Piza, Rui de Arruda, Pimenta de Castro, Alpinolo Lopes Casali, Ângelo Simões de Arruda, Roland Corbisier, Francisco de Almeida Prado, Leães Sobrinho, Silva Bruno, Lauro Escorel, Almeida Salles, os estudantes de medicina Rui Ferreira dos Santos e Waldir da Silva Prado, os de engenharia Luis Saia e Otacílio, os ginasianos Inácio e Goffredo da Silva Telles, Azib Buzaid e muitos mais, que de memória não posso mencionar.

Abri a sessão com as seguintes palavras:

“Senhores: por toda a parte ouço a palavra revolução; de todos os lados nos chegam os ecos de ingentes reclamos que, em meio à confusão dominante no país desde outubro de 1930, apelam para o “espírito revolucionário”. Na verdade, tudo indica que o Brasil quer renovar-se, quer tomar posse de si mesmo, quer marchar resolutamente na História. Clama-se pela justiça social e por uma mais humana distribuição dos bens; exige-se dos Estados que intervenham, com poderes mais amplos, tendentes a moderar os excessos do individualismo e a atender aos interesses da coletividade. Neste momento, congrego-vos para estudarmos os problemas nacionais e traçarmos, em consequência destes estudos, os rumos definitivos de uma política salvadora. No entanto, quero frisar, com a maior veemência, que procede das profundas convicções espiritualistas inspiradores do meu pensamento e da minha ação, o seguinte: fala-se de revolução, pedem-se revoluções; pois bem: façamos as que forem necessárias à justiça humana e à saúde da Pátria, mas não nos esqueçamos um instante sequer dos intangíveis direitos da pessoa humana. Peço-vos, senhores, que havendo de reformar, de modificar, de revolucionar, tudo façais se assim vos ditar vossa consciência; mas por favor, meus amigos, não toquemos no Homem!”

E acrescentei, apaixonadamente:

“O Homem é livre, Deus o fez livre e responsável, e o seu maior tesouro é sua liberdade, a intangível expressão da sua própria consciência, o caráter que imprime ao que faz e ao que possui, o escudo com que se defende do arbítrio do Estado e da Coletividade e é constituído pelos grupos naturais em que se integra. Assim, repito-vos: não toquemos no Homem e na sua liberdade!”

* * *

Foi com tais palavras que fundei a Sociedade de Estudos Políticos. Diariamente se reuniam as suas comissões, organizadas de acordo com as vocações de cada um dos associados e consoante as categorias dos assuntos: filosofias, sociologia, economia e finanças, pedagogia, geografia, história, direito publico, medicina social, arte, literatura.

Em 6 de maio de 1932, propus que se criasse uma sessão subordinada e paralela à Sociedade de Estudos Políticos, a qual teria por tarefa uma obra educativa de mais larga amplitude, destinada a formar a consciência popular no trato dos problemas brasileiros e sob inspiração dos princípios filosóficos e programa político da nossa agremiação.

Essa seção foi criada pelos votos da assembleia, com o nome de “Ação Integralista Brasileira”.

Nomeou-se uma comissão para elaborar o Manifesto que se deveria lançar ao povo, sendo a mesma constituída por Mota Filho, Almeida Camargo, Ataliba Nogueira e eu, designado relator.

Elaborei o anteprojeto daquele documento no correr de maio, mês inolvidável na crônica dos meus sofrimentos, pois na data de 23, foram empasteladas e incendiadas pelos separatistas as oficinas de “A Razão”, o grande matutino acusado pela demagogia da praça pública como adepto do governo ditatorial de Vargas, pelo simples fato de, nas suas colunas, se fazer obra nacionalista, que se superpunha às paixões regionais.

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Em junho, a Sociedade de Estudos Políticos realizou duas reuniões. Na primeira, li o anteprojeto do Manifesto, ficando deliberado que se tirariam dele várias cópias, para se distribuírem pelos associados, a fim de que trouxessem reparos, emendas ou acréscimos a serem discutidos. Na segunda, quase sem modificações, o Manifesto ficou aprovado. Estávamos, porém, nas vésperas de gravíssimos acontecimentos, pelo que Mota Filho julgou conveniente que se adiasse a publicação para momento mais oportuno.

De fato, em 9 de julho estourou a Revolução Constitucionalista. Recolhemo-nos ao silêncio. Era preciso que nos habituássemos a ver passar tempestades…

* * *

Quando terminou a Revolução Paulista, o meu primeiro cuidado foi mandar imprimir o Manifesto que ficou pronto e foi distribuído no dia 7 de outubro.

Dentre as muitas afirmações e proclamações contidas no Manifesto com que se fundou a “Ação Integralista Brasileira”, quero destacar as seguintes frases:

“O homem e sua família precederam o Estado.”

“O Homem não pode ser transformado numa abelha ou num térmita; ele é centro de uma gravidade sentimental”.

“Tirem a Família ao Homem e fica o animal; façam dele a peça funcionando no Estado e teremos o autômato infeliz, rebaixado de sua condição superior”.

“A influência estrangeira é um mal de morte para o nosso nacionalismo; combatê-la é o nosso dever”

“A nossa Pátria precisa estar unida e forte, solidamente construída, de modo a escapar ao domínio estrangeiro, que a ameaça dia a dia, e salvar-se do comunismo internacional que está entrando no seu corpo como um cancro”.

“Criaram-se preconceitos étnicos originários de países que nos querem dominar; desprezaram-se as nossas tradições; nós somos contra a influencia dessa pseudo-civilização que nos quer estandardizar”.

“Levantamo-nos num grande movimento nacionalista, para afirmar o valor do Brasil e de tudo que é útil e belo no caráter e nos costumes brasileiros”.

“O comunismo destrói a Família para melhor escravizar o operário ao Estado; destrói a Personalidade humana para melhor escravizar o Homem à coletividade; destrói a Religião para melhor escravizar o ser humano aos instintos; destrói a iniciativa de cada um, mata o estimulo, sacrifica uma humanidade inteira por um sonho falsamente científico”.

“Não destruímos a pessoa; dignificamo-la”.

“Queremos o operariado com garantia de salários adequados às suas necessidades; interessando-se nos lucros conforme o seu esforço e capacidade; de fronte erguida, tomando parte nos estudos de assuntos que lhe dizem respeito; de olhar iluminado, como um homem livre”.

“Deus dirige o destino dos povos”.

“O homem deve praticar sobre a terra as virtudes que o elevam e aperfeiçoam”.

Todas estas frases tomei-as avulsas, aqui e ali, no Manifesto de Outubro. Elas evidenciam que, desde aquelas datas de 1931 e 1932, nunca ensinei aos brasileiros uma doutrina política que submetesse a personalidade humana ao arbítrio e à absorção do Estado. E nem podia ser de outra forma a exposição do meu pensamento, uma vez que, já em 1926, escrevi nas páginas do meu livro “O Estrangeiro”:

“As instituições americanas repousam na rocha viva dos Direitos do Homem. Quando desabar o dilúvio russo, as suas ultimas ondas virão morrer aqui… E a América reconstruirá o que estiver destruído no mundo”.

Tão ardente fé nas instituições democráticas nunca me poderia ter feito um adepto ou propugnador do estatismo absorvente, das ditaduras supressoras de todas as liberdades.

Foi sempre tão grande a minha preocupação em tornar claro esse pensamento de respeito à liberdade humana, que não julguei suficientes as declarações contidas no Manifesto de Outubro de 1932; e, assim, no ano seguinte, redigindo os 27 artigos das Diretrizes Integralistas, ali consignei na VIII proposição:

“O Integralismo reconhece no Homem um ser dotado de personalidade intangível, com direitos naturais na tríplice esfera das suas legítimas aspirações materiais, intelectuais e espirituais.”

E defini no art. IX a obrigação do Estado:

“de prover as condições necessárias à satisfação integral dessas legitimas aspirações da personalidade humana, respeitando e favorecendo a sua mais ampla expansão, norteando-se sempre pelos imperativos da harmonia social e dos superiores destinos do Homem”.

Lembrando-me, porém, da crítica aliás justa, de Tristão de Ataíde à carta que em 1931 escrevia a Augusto Frederico Schmidt, critica fraternal em que ele me lembrava a necessidade de contrapesar aos “direitos” os “deveres” do Homem, consignei no artigo X das aludidas “Diretrizes” o seguinte:

“O Integralismo, proclamando, assim, os direitos intangíveis da personalidade humana, e por isso mesmo, insiste na obrigação impreterível que cabe a todo o indivíduo de cumprir à risca todos os deveres que resultam da sua vida em sociedade; declara, portanto, todo indivíduo subordinado, na esfera das suas atividades, aos interesses superiores da coletividade, que, por sua vez, condicionam e favorecem a legítima expressão da sua personalidade e a satisfação das suas mais nobres aspirações”.

* * *

De tal sorte me afligia o receio de que se tomasse o movimento que desencadeei no país (numa hora grave em que ele, de fato, salvou a Pátria) não pela essencialidade de sua doutrina, porém pelas exterioridades que ele houve de cingir em razão de especialíssimas circunstâncias históricas, que nos próprios Estatutos do Partido, em que se consubstanciou a Ação Integralista, fiz consignar (letra “h” do art. 2º):

“a liberdade da pessoa humana dentro da ordem e da harmonia social”.

E não parei aí, porque na Carta de Natal de 1935, condenando o estatismo nazista e a sua mística racial e messiânica, escrevi o capítulo instituído “Limites do Império de Cesar” que, por exprimir com a maior clareza a síntese da minha doutrina do Estado, achei-o digno de inserção no capitulo LXIV da “Vida de Jesus” levada ao prelo em 1940. Nessa página tornei patente o meu repúdio ao Estado absorvente, que principiara a ser designado pelo nome de Estado Totalitário, a partir da ascensão do nazismo ao poder, na Alemanha. Essa expressão (“Estado Totalitário”), que poderia ser tolerada até 1933, [2] passou a ser, para todos nós, execrável, desde o instante em que se confundiu com a brutal opressão exercida pelo nazismo sobre os direitos impostergáveis da Pessoa Humana.

Vendo no nazismo, nem mais nem menos do que uma forma do próprio comunismo, concebida no sentido “nacional” e “étnico”, ao passo que o totalitarismo soviético se ampliava ilimitadamente no sentido universal, nem eu nem os que me seguiam poderíamos permitir, através de confusões de palavras, a mínima interpretação errônea da nossa doutrina vasada nos moldes mais puros da democracia cristã.

O meu ensino, pois, durante toda a vigência da Ação Integralista Brasileira, foi ensino propagador de uma doutrina espiritualista cristã, democrática e nacional-brasileira, fundada nos princípios eternos de Deus e da imortalidade da Alma Humana, nas tradições da Pátria, nos fundamentos de brasilidade das nossas estruturas nacionais, na sustentação da liberdade do homem, nas aspirações de independência e grandeza do Brasil.

Continuo a pensar da mesma forma. Se repudiasse essas ideias fundamentais, eu passaria a ser ou comunista ou nazista, ou ditatorial. Mas como quero continuar a ser cristão, democrata, brasileiro, jamais poderei renegá-las. Penso hoje, como pensava ontem. Sou o mesmo. E se alguém não me conhecer é porque nunca me conheceu.

Nota da Edição:

[1] Na época, ainda não se conheciam as abundantes reservas de riquezas do solo, subsolo e mares da América do Sul, ou o valor de muitas dessas riquezas. Dizia-se, por isso, que a América do Sul era um lugar pobre e sem potencial econômico natural.

[2] Nos anos 30, “Estado totalitário” era uma palavra de muitos significados. Um deles, por exemplo, exprimia o Estado que “totalizava” todos os grupos sociais, integrando-os na sua estrutura. Outros indicavam o Estado que servia à sociedade inteira, e não apenas algumas de suas partes.