Imaginai um navio sem leme, avançando nas ondas a toda força do vapor. E imaginai, no alto mar, um navio sem vapor, nem velas, nem remos, a dispor de um leme de exatidão corretíssima.

O navio sem leme irá bater em algum rochedo, irá encalhar em algum banco de areia, irá perder-se na vastidão do mar.

O navio sem vapor, ainda que possuindo magnífico leme e experimentado piloto, não irá para parte alguma e acabará vencido pelas vagas, ou tão quebrado e triturado pelos dentes dos arrecifes, como o outro que não tinha direção.

O segredo das viagens perfeitas está em que o leme não seja tão orgulhoso que julgue ser ele quem possui a força propulsora do barco, e em que o valor não se faça de tal modo pretensioso, que imagine-se capaz do oficio da pilotagem.

O leme precisa do vapor e o vapor precisa do leme. Se os dois se desavierem, vão ambos para o fundo do mar.

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Comparo, numa organização como o nosso partido, o trabalho intelectual ao leme, e o sentimento, o entusiasmo, a mística da agremiação, ao vapor.

Se dissermos que o nosso único esforço deve cingir-se ao exercício do pensamento, no recolhido mister das meditações profundas, ou no inquieto pesquisar das fórmulas solucionadoras dos problemas sociais ou nacionais, corremos o risco de nos cristalizarmos numa reduzida companhia de eleitos, sem nenhum benefício à coletividade. E se dissermos que todos os labores subjetivos de aprimoramento das nossas almas e de clarificação das nossas ideias, e todo dispêndio de energia mental na procura das soluções teóricas e práticas das questões que constituem a súmula do nosso temário, devem ser postos de lado, para só deixarmos abrir as asas ao nosso entusiasmo, arriscamo-nos a cair numa demagogia cuja ação virá agravar o confusionismo dos espíritos.

Precisamos, ao mesmo tempo, e intimamente ligados, do Pensamento e do Sentimento, do Cérebro e do Coração, a ação subjetiva e a ação objetiva, numa palavra, o Leme e o Vapor.

A hora que vivemos é demasiadamente trágica, para nos recolhermos a um gabinete e egoisticamente nos entregarmos a elucubrações dizendo que andamos em busca da verdade. Mas a hora que vivemos é demasiadamente grave, para nos entregarmos exclusivamente a um sentimentalismo expansivo que nos pode levar a erros involuntários lamentáveis.

A nossa ação deve, portanto, ser, ao mesmo tempo, de estudo e de atividade externa, de gabinete e de rua. Em 1931, escrevi: não estamos num concílio, mas numa batalha. Essa frase continua de pé. Toda batalha pressupõe um estado maior, onde se estudam os acidentes de terreno, os recursos do adversário, a sua posição, os seus presumíveis movimentos, assim como a nossa localização, as nossas possibilidades, tudo em função de um pensamento nítido que nos propomos executar.

Não perdemos de vista o pensamento que nos dirige e não perdemos contato com o sentimento que nos anima.

Sentimento sem pensamento não é sentimento, mas simples impulso instintivo. E pensamento sem sentimento é pensamento morto, ou estático, ou inconcretizável, por conseguinte inútil.

Todo pensamento, para se transformar em realidade, precisa, antes de tudo, transformar-se em sentimento. Todo sentimento, para ser criador, estável, permanente, eficaz, precisa estar animado de um pensamento, ou ser, para este, o que o corpo é para a lama, – a forma tangível.

Mas o pensamento, para se fazer sentimento, ou para se revelar na forma do sentimento, precisa estar cheio de espírito de humildade.

Pois todo pensamento que quer transmitir-se precisa supor, nos a quem se dirige, a capacidade de recebê-lo e de contê-lo.

E se compreender é igualar, como disse Rafael, a suposição de que os outros podem compreender o nosso pensamento é uma suposição de igualdade. Acreditando que os outros possuem faculdades de raciocínio, de crítica, de receptividade para pensar como pensamento, ou até melhorar ou aperfeiçoar o que pensamentos, nós nos tornamos humildes e pela humildade damos a vida do sentimento às ideias que pregamos.

Ao contrário, o homem que se imagina tão alto que não se digna procurar os outros para transmitir-lhes uma mensagem, resseca-se no seu egoísmo e petrifica-se no seu orgulho.

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Todo pensamento sincero anseia por se fazer sentimento. E quando se faz sentimento, desce, como João Batista dos desertos da Peréia e vem procurar a multidão nas margens do rio.

Só o pensamento insincero não procura proselitismo. Pois a sinceridade supõe a posse da verdade e a verdade, sendo um bem, é altruística, pelo que se esforça em propagar-se. “Ninguém acende a candeia para a colocar atrás do armário, e sim para a colocar em cima”, disse Jesus aos seus discípulos, acrescentando “o que eu vos digo no gabinete deveis anunciar do alto dos terraços”.

Essas palavras são a apologia do comício. Nem foi de outra forma que Jesus anunciou a Boa Nova. O Sermão da Montanha foi um comício. E quando multiplicou os pães para cinco mil pessoas, estava em comício.

Na manhã do Pentecostes, logo que as línguas de fogo do Espírito Santo desceram sobre as cabeças dos Apóstolos no Cenáculo, eles abriram as portas e se puseram a falar ao povo. E de tal forma falaram, com tanto entusiasmo, transformando seus pensamentos em sentimentos, que alguns fariseus que andavam por ali disseram: “estes homens estão bêbados”. Ao que Pedro protestou, exclamando: “Estes homens não estão embriagados, como pensais, a uma hora tão matinal; mas sobre eles desceu a luz do Espírito Santo.”

É o que os fariseus ignoravam que a Verdade embriaga como o vinho, ao passo que a Mentira não embriaga porque é feita de cálculos e vive apenas pelo pensamento, não podendo ser sentimento porque o sentimento e a falsidade são como água e azeite: não se misturam.

A mentira, para falar, usa da retórica; a verdade usa da eloquência.

A retórica pode não ser sincera, mas o sentimento é sempre sincero. Daí o motivo pelo qual muitas vezes um ignorante fala melhor do que um letrado.

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Eu fiz uma grande experiência histórica pela qual verifiquei o fracasso do pensamento sem sentimento e do sentimento sem pensamento.

Lançando uma doutrina vieram apostolá-la homens de pensamento, homens de sentimento e homens de pensamento-sentimento.

Os primeiros, os homens de pensamento, fizeram-se logo os teorizadores, a sistematizar as ideias, a objetivá-las em lineamentos precisos de uma estrutura jurídica admirável. Os segundos, os homens de sentimento, criaram a mística de algumas ideias contidas na minha doutrina, isolando-as e imprimindo-lhes uma força poderosa. Os terceiros conseguiram fundir num todo harmonioso, o sereno esforço dos primeiros e os dinâmicos impulsos dos segundos.

Os primeiros eram intelectuais puros. Sob a superfície de um calor externo, que os aquecia no convívio dos sentimentais, eles eram frios e tranquilos, porque não possuíam aquele fogo interior cujas centelhas se irradiam aos momentos emocionais do contato do cérebro com o coração. Iluminavam, mas não aqueciam. A sua luz era a das fosforescências noturnas que sobem dos cemitérios ou enchem de estranhos clarões a soledade dos mares equatoriais.

Os segundo eram sentimentais impulsivos e frementes. Como os aquecedores elétricos, incandesciam os fios em espiral até ao rubro, mas não iam além da vaga luz vermelha a cujos reflexos, a mulher do Evangelho não acharia no aposento escuro a sua dracma perdida. Fogo interior e luz insuficiente, ao contrário dos outros que eram gelo interno e luz externa. Incontestavelmente havia nestes segundos maior grandeza, pois constituíam e constituirão sempre a matéria prima dos heroísmos e do sacrifício, o elemento cordial recuperável pela ação do pensamento, ao passo que naqueles primeiros o ser se reveste da couraça da irrecuperabilidade pela qual jamais penetra o sentimento.

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Os segundos, os sentimentais, soçobram nos desastres dignos, nos erros catastróficos a que são levados pelo seus impulsos, esfacelando o sonho nas aspas das realidades imprevistas; mas tombam com grandeza e, na própria desilusão em que depois mergulham, apresentam certa majestade. Os primeiros, os intelectuais puros, tangenciam, na hora das adversidades a que os segundos os arrastam, mas eximem-se de todas as consequências, acomodando-se em novas situações para as quais levam intacto o seu pensamento gélido.

Só continuam, irredutíveis, persistentes, no prosseguimento de uma luta irremovível, os homens do terceiro tipo, isto é, aqueles que são, ao mesmo tempo, capazes de pensar e capazes de sentir. Possuem a força do vapor que impulsiona e a segurança e precisão do leme, que dirige.

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A capacidade de ir aos outros, de arregimentar, de doutrinar, de esclarecer, de aproveitar os elementos mais heterogêneos no esforço comum de atingir um único fim, é um poder de todo aquele que nem se deixa estiolar nas elucubrações mentais, nem se deixa perder nos arrebatamentos sentimentais.

Para isso é preciso, acima de tudo, saber compreender. Pois se o espírito da humildade nos leva a considerar os outros capazes de nos entender, o espírito da caridade nos leva a procurar compreender, para aceitarmos os homens como são e não como desejaríamos que fossem.

Partimos da convicção de que os outros nos podem compreender, mas se não usarmos da precaução que consiste em nos esforçarmos para também compreender os outros, podemos, por essa falta de caridade, cair na ausência da humildade e, então, regressamos à torre de marfim, onde se encastelam todos os inúteis roídos de vaidade e alcandorados naquele desprezo pelo nosso semelhante, que torna cada vez mais fátuos e antipáticos os que se têm na mais alta conta.

Compreender é aceitar para orientar. É acompanhar a corrente e desviar-lhe o curso. Ou melhor: é ir contra a corrente sem que esta se aperceba de que assim procedemos. Nem outra didática nos ensinou Aquele que foi o Mestre dos Mestres, porque foi Humano e Divino.

Diz Catarina Emmerich, a prodigiosa vidente do século XIX, que o os pais de Tiago e João, sentiam certa inquietação pelas sucessivas viagens de seus filhos em companhia de Jesus, mas esperavam, todavia, que das pregações do Mestre resultaria a formação de um grande Império, onde eles e os filhos tivessem um lugar de preponderância.

Os próprios João e Tiago, conforme nos relatam os Evangelhos, não tendo coragem de dizer abertamente a Jesus as suas pretensões, parece terem incumbido sua mãe dessa missão, pois vemos a pobre mulher dirigir-se ao Mestre, solicitando para os filhos um lugar à direita e à esquerda do trono.

Como se vê, juntamente com a propagação da mais santa das doutrinas, ia a ambição política. E Jesus não viu nenhum mal nisso, tanto que, “sabendo tudo dos homens e não precisando que ninguém testificasse dos homens”, consoante diz o Evangelista, nunca pensou em expulsar da comunidade dos seus discípulos aqueles dois ambiciosos, que por isso mesmo, pela magnanimidade do Cristo, se tornaram mais tarde tão grandes nas virtudes e no sacrifício.

Ora, se isso se deu em relação à mais santa das causas, como pretendermos evitar que ocorra com as empresas doutrinárias que, por mais puras que sejam, num plano muito inferior à pregação do Evangelho?

É no convívio e na própria doutrinação, no exemplo, no recrudescimento da paixão pela causa que se modificam os homens, e não mediante códigos ou medidas coercitivas, cujo critério pode levar a erros e injustiças e ao afastamento de elementos muitas vezes dos mais aproveitáveis.

O método de Cristo é incontestavelmente o melhor de todos.

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Mas não basta compreender e aceitar para orientar e conduzir. É preciso, a todo aquele desfralda uma bandeira, não ficar com ela no mesmo lugar. Toda evangelização é movimento.

“Ide e pregai”, diz o Cristo. E, com estas palavras, ensina a todos os que são portadores de um pensamento, de uma mensagem que desejam transmitir aos homens.

Ide… quer dizer: não vos conserveis parados. Pelo contrário, caminhai, andai, viajai, movimentai-vos de um lugar para outro.

Se os Apóstolos ficassem em Jerusalém mandando diretivas aos variados pontos do Império Romano, jamais teria existido o Cristianismo. As cartas de São Paulo dizem com frequência: “quando aí estive”, “quando, de novo, eu aí for”. Ele conhecia pessoalmente as comunidades cristãs de Corinto, de Éfeso, de Roma, da Galácia, da Bitínia, e era conhecido por elas. Essa técnica é ainda a técnica não só para os continuadores da evangelização no mundo, mas para todos aqueles homens que pretendam propagar ideias de qualquer natureza, até mesmo as ideias más.

Mas, para isso, é necessário que o pensamento se faça sentimento e como tal se revele, não só nos atos que exprimem atitudes subjetivas, mas também nas exterioridades que exprimem a identidade de todos com o pensamento comum.

Pensamento e sentimento. Cérebro e Coração. O leme e o navio. Compreensão. Humildade. Caridade. Ação. Movimento. Eis tudo, eis o segredo da perfeita unidade das comunidades políticas, que querem agir, não no sentido de puro prazer intelectual ou no sentido oposto de puro utilitarismo ambicioso.

Se nos intelectualizarmos, transformar-nos-emos numa Academia, poderemos ser, quando muito, uma instituição do tipo do IBGE, benemérita, mas cuja finalidade não é a de agitar, de resolver a consciência popular, para nela acender a centelha de um idealismo vivo e ativo.

Se nos abastardarmos na rejeição de todas as preocupações de estudo, de pesquisa séria dos nossos problemas, e, acima de tudo, de esforço pelo nosso aperfeiçoamento moral, seremos apenas agitados mas não construtivos, e exploraremos no povo os seus instintos inferiores de destruição.

Mas numa organização que se propõe altos objetivos sociais e históricos, há lugar para todas as aptidões e temperamentos. Cumpre aos que dirigem, saber colocar cada homem no seu lugar, de sorte, no exercício das mais variadas e, por vezes, aparentemente contraditórias missões.

Saber realizar esse plano de aproveitamento, eis o segredo dos chefes. Saber fazer heterogeneidade a homogeneidade, coordenando o labor diferenciado e as próprias personalidades contrastantes da agremiação, a fim de que todas se somem no esforço comum, eis a grande, a insuperável técnica.