São coisas absolutamente diversas: “doutrina” e “programa”.

A palavra “doutrina” procede do latim (doctrina) e significa o ensino do mestre, ou doutor (doctor), conforme a acepção que encontramos em Ovídio e, mais precisamente em Juvenal, que liga a ideia de doctor à existência do discípulo.

“Doutrina é um conjunto de princípios em que se baseia um sistema religioso, político ou filosófico”, dizem os dicionários mais em voga em nossa língua. E, assim dizendo, os nossos léxicos distinguem os dois termos: “principio” e “sistema”.

A própria doutrina, portanto, pode-se distinguir do sistema, sendo aquela um conjunto de verdades e este um conjunto de verdades coordenadas e subordinadas entre si, exprimindo-se em conexão lógica.

A palavra “programa”, entretanto, quer dizer outra coisa, bem diversa da palavra “doutrina”. A sua origem vem do grego (“pro” e “graphein”), significando algo que se escreve com antecedência. É uma espécie de sumário, ou de índice, para dar os pormenores de uma cerimônia, de uma festa, dos pontos a serem ensinados num curso, ou a exposição sucinta que um partido faz, ou dos seus princípios, ou dos caminhos que pretende seguir para atingir a concretização pratica dos princípios que em outro documento foram expostos.

Uma doutrina, por conseguinte, tem caráter estável, permanente, ao passo que um programa, mesmo pretendendo constituir a efetivação prática de uma doutrina, tem caráter mudável. E esse caráter mudável dos programas em relação ao caráter estável das doutrinas, vem do fato de se verificar, a miúdo, pela experiência, que um programa, que se julgou, em dado momento, o mais adequado à realização da doutrina, deixou de ser, por qualquer motivo, o programa preferido.

Nesse caso, a doutrina (conjunto de princípios em que se baseia um sistema religioso, político ou filosófico) não mudou; o que mudou foi o programa.

Eu posso, por conseguinte, tendo mudado de programa, não ter mudado de doutrina. Afirmando que adoto a mesma doutrina, posso declarar que já não adoto o mesmo programa, por julgá-lo inexequível, ou defeituoso, ou mesmo errado e até em contradição com a doutrina, que não abandonei, e para a qual procurei um novo programa.

Por exemplo: proclamei ontem que a fonte da soberania nacional manifesta-se pela legítima representação do povo nas urnas, de acordo com (suponhamos) os ensinamentos naturalistas de Rousseau, ou de conformidade com as lições espiritualistas de Suárez. Aí está um “princípio”, que faz parte de uma “doutrina”. Esse princípio, eu continuo a proclamar, pois minha doutrina não mudou. Entretanto, também ontem, num programa que julguei o instrumento mais adequado à efetivação daquele princípio, eu propus, ou programei (pro-graphein) que essa representação do povo se fizesse por meio da sua categorização em classes e a manifestação de cada classe pelo voto (representação classista). Mas acontece que, no decurso destes últimos dez anos, por incúria dos governos, todos os órgãos de classe (sindicatos e associações) ficaram controlados pelos comunistas. Eu, então, vejo que se for aplicada aquela ideia “programática” da representação de classe, sem se tomarem certas providências, antecipadamente, no sentido de impedir o domínio do bolchevismo nos órgãos de classe, os comunistas se apoderam do parlamento, destroem a democracia, implantam o fascismo russo. Ora, diante dessa verificação, sou forçado a concluir que o meu “programa” de ontem iria concorrer para que o meu “princípio” fosse contrariado. Qual é o meu princípio? O da representação legítima do povo. Esse está de pé. Por conseguinte, posso dizer: não mudei de doutrina, mas mudei de programa. Se eu mudasse de doutrina, não seria democrático. Porque a minha doutrina visa realizar a verdadeira democracia (demo — povo; kratia — governo: governo do povo).

* * *

Doutrina é um conjunto de princípios.

Programa é um sumário, um índice de meios.

Quando um partido não possui um documento doutrinário, ou uma literatura que contenha os seus princípios, nesse caso o seu “programa” conterá, implicitamente, ou explicitamente, o que poderemos chamar (ainda que com impropriedade) a sua doutrina. Pode-se dar o caso, também, de um partido, em documentos para o povo, incluir em exposições de caráter essencialmente doutrinário, sugestões de “meios” constantes do seu programa.

Mas o que, à primeira vista, ressalta aos olhos é a distinção das “matérias de doutrina” das “matérias de programas”, embora em alguma ocasião, essas matérias venham juntas.

Para se compreender essa diferença, podemos utilizar-nos do velho Aristóteles, quando distingue “substância” e “acidentes”. Para o Estagirita, “substância” é o que existe por si mesmo. Tudo quanto não se pode conceber sem dependência de um ser pressuposto, é “acidente”.

“Queremos naturalmente saber”, escreve Aristóteles, “se cada um destes termos: andar, passar bem, assentar-se, deve chamar-se ser ou não ser”. A realidade desses diversos atos pode substituir-se por outras realidades, até contrárias, como não andar, não passar bem, ficar de pé. Mas o ser substancial (o que anda ou não anda, senta-se ou não se senta, procede de um modo ou de outro modo), esse é o verdadeiro “ser”.

É essa substância que nos importa conhecer para formarmos um juízo exato do verdadeiro ser. Pois se julgarmos o ser substancial pelos “acidentais”, não teremos nenhuma ideia precisa sobre o mesmo.

Aplicando o pensamento de Aristóteles à tese que aqui desenvolvo, faço distinção entre “doutrina” e “programa”, dizendo que aquela é substancial e que este é acidental. Um programa (ser acidental) não pode existir sem um doutrina (ser substancial); mas ao contrário, uma doutrina, pela sua substancialidade, pode preexistir, coexistir, e subsistir em relação a um ou mais programas.

Do mesmo modo como o homem, andando ou parado, comendo ou jejuando, adormecido ou acordado, sendo médico ou advogado, sendo comunista ou democrata, é sempre o mesmo homem, o que deve ser conhecido pelo que é substancialmente, e não pelo que representa acidentalmente, também uma doutrina deve ser conhecida pelo que é em si mesma e não pelo programa que um dia tomou e que depois rejeitou ou substituiu.

Pois se adotarmos outros critérios no julgamento, tomando como doutrina pontos de programa, teremos caído no erro dos filósofos fenomenistas, que a partir de Hume, com Stuart Mill, Spencer, Wundt, Paulsen, Comte e outros, para destruir a doutrina católica baseada na metafísica, como esta no substancialismo, não quiseram fazer a distinção aristotélica entre o “substancial” e o “acidental”.

Isto posto, pergunto: o que é substancial em mim, como doutrinador político, ou como fundador de uma filosofia política em meu país: a minha doutrina, ou os meus programas?

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Evidente que o substancial é a minha doutrina. Cumpre, pois, para que alguém me julgue, conhecer dela. Que doutrina é essa? [1]

* * *

Vou resumir, em poucas linhas, a doutrina que prego, que preguei e que, se deixar de pregar, é porque me terei passado para o campo dos antidemocráticos, não apenas dos adversários da Constituição brasileira vigente, no que ela tem de substancial, como até mesmo dos negadores do direito natural.

Essa doutrina, que sustentei na elaboração da Carta dos Direitos e Deveres do Homem construída sob os auspícios do Vaticano, pelas Conversações Católicas Internacionais de San Sebastian; essa doutrina que se encontra em todos os Documentos Oficiais do Integralismo Brasileiro, desde 1932 a 1937 e desde 1938 a 1948, resume-se no seguinte:

  1. O Homem é um ser criado à imagem e semelhança de Deus, que lhe assinalou um destinou sobrenatural, outorgando-lhe a liberdade, da qual decorre a sua responsabilidade e mediante cujo exercício, o Homem procura atingir fins temporais, objetivando o fim eterno.
  2. Em consequência, deve ser assegurada à pessoa humana a intangibilidade e a dignidade que decorrem da sua liberdade e da sua responsabilidade.
  3. Dessa intangibilidade, dignidade e liberdade, participam os grupos naturais, por serem associações de homens e porque, de certa forma, constituem projeções do Homem no Espaço e no Tempo. Esses grupos são a Família, a Associação de Trabalhadores, o Município, a Nação, a Sociedade Religiosa.
  4. A propriedade, como resultado do trabalho humano, participa da intangibilidade do Homem, devendo o seu direito ser assegurado.
  5. A Nação, sendo um conjunto de Municípios, de Associações de Trabalhadores, de Famílias e de Homens Livres, vai buscar os fundamentos da sua Soberania no próprio princípio da intangibilidade, da dignidade e da liberdade do Homem.
  6. Esses elementos componentes da Nação devem representar-se como expressão de soberania por meio do melhor sistema eleitoral adequado às circunstâncias históricas e às realidades sociais ocorrentes.
  7. A nação soberana cria o Estado, mas não pode ser confundida com ele, como o nacional-socialismo (nazismo) ou o internacional-socialismo (comunismo, ou nazismo russo).
  8. O Estado, ordenamento jurídico da Nação, não pode ser um fim em si mesmo, pois ele é apenas um meio de segurança coletiva, de garantia a liberdades legítimas e de expressão internacional.
  9. O Estado deve assegurar a liberdade de religião, de pensamento, de reunião, de associação, de propaganda política, apenas intervindo quando se processarem movimentos tendentes a destruir essa mesma liberdade. [2]
  10. O Estado deve assegurar a iniciativa privada e a liberdade de comércio e de produção, apenas intervindo quando indivíduos, ou grupos de indivíduos, impedirem o livre funcionamento das atividades econômicas, pela prática de intervenções ilícitas, como as condenadas pelas Encíclicas Rerum Novarum e Quadragessimo Anno.
  11. A Tradição Nacional deve ser a base moral da própria personalidade da Pátria consciente do seu passado, dos deveres do seu presente e dos objetivos do seu futuro.
  12. A moralidade privada ou pública deve basear-se em fundamentos religiosos. Por motivos da fé num Deus Criador e Pai, os homens devem considerar-se irmãos, procurando viver em harmonia e combatendo todas ideias de luta de classe, de raças ou de regiões geográficas.
  13. A diferenciação das comunidades políticas na unidade humana é uma realidade histórica e natural, desejada por Deus, como desejou a diferenciação de cada personalidade humana. Sustentar, pois o culto da Pátria-Nação, é dever de todos os filhos de um mesmo país oriundos da mesma História.
  14. A vida temporal dos Homens e dos Povos é um meio, cujo fim está na sobrenaturalidade do seu destino. O Homem é a base da Sociedade e Deus é o seu começo e o seu fim último.

Essa é a minha doutrina. Essa, preguei ontem, prego hoje, pregarei amanhã. É por ela que devo ser examinado e julgado. Há vinte e cinco anos, prego essa doutrina.

* * *

A prova de que a minha doutrina não é totalitária está na carta que mandei ao Presidente Getúlio Vargas, rejeitando o cargo de Ministro que ele me oferecia. Nessa carta, eu narro tudo quanto se passou quando o referido Presidente Vargas mandou o Dr. Campos entregar-me o projeto datilografado da Constituição que ele depois outorgou em golpe de Estado. Eu rejeitei aquela Constituição justamente por ser totalitária. Não participei do golpe de Estado. Fui perseguido, preso, exilado por isso. Uni-me a democratas como Otávio Mangabeira, Flores da Cunha, generais Castro Júnior, Euclides Figueiredo e outros, no intuito de restaurar a Carta Constitucional de 1934. Tudo isso é sabido, tenho afirmado muitas vezes e nunca fui desmentido.

Muitos há que me querem julgar pelas exterioridades do Partido Integralista. Esse partido usou uma camisa-verde, justamente para se opor aos camisas-cáqui alemães, sendo por isso atacado pelos jornais nazistas. Eu mesmo escrevi um artigo, em 1935, combatendo o nazismo. Tudo isso demonstra que éramos espiritualistas e democráticos.

A propaganda que se fez, no intuito de me desfigurar a minha doutrina foi por ordem do Comintern. Essa ordem veio para o Brasil, em 1934, enviada por Victor Gruau, da Rua de L’Echaudé, 14, Paris. Nessa ordem, havia a diretiva a todos os comunistas da imprensa, para que me acusassem e acusassem o Integralismo como nazista.

Até hoje, todos os comunistas e cripto-comunistas batem na mesma tecla.

Notas da Edição:

[1] Essa distinção não é nova no movimento integralista. Em O Integralismo, originalmente publicado no livro O que o Integralista deve saber, de 1934, Gustavo Barroso se esforça por dizer que o Integralismo é diferente dos partidos uma vez que se guia por uma doutrina, e não por um programa. Explicando, primeiro, o que são programa e doutrina, conclui: “Isto [a Doutrina Integralista] é uma Política, da qual decorre uma administração. Os partidos somente são capazes de chegar até um programa de administração. O Integralismo constrói uma Doutrina Política, em consequência da qual poderá formular inúmeros programas de administração”.

[2] Em Direitos e deveres do Homem, cap. 8, Plínio Salgado explica melhor a questão da liberdade. Diz: “O absoluto desprezo pelas magnas questões da origem e da finalidade do Ser Humano abstrai inteiramente o valor-Homem, para só considerar a liberdade de expansão a todas as ideias e atividades, sem entrar no mérito dos seus conteúdos, o que significa equiparar, na mesma plana de direitos, o Bem e o Mal, o Justo e o Injusto, a Verdade e o Erro. E como as forças da destruição agem mais rapidamente, porque destruir é sempre mais fácil do que construir, o Liberalismo agnóstico e naturalista consente na demolição do próprio Homem, por conseguinte, da própria Liberdade que ele, liberalismo, diz defender e que, sendo atributo e prerrogativa do Homem, não pode subsistir sem o Homem”.