Esta conferência foi pronunciada no salão nobre da Escola das Belas Artes do Rio de Janeiro, em evento da Ação Integralista Brasileira, presidido por Gustavo Barroso e Tasso da Silveira, em agosto de 1937. Traça os princípios de uma concepção integralista e espiritualista da estética. Em seguida, mostra a verdadeira arte como um fenômeno de renovação do universo pelo espírito humano. Por fim, estuda o papel que as artes devem ter no Brasil, para o bem da sua grandeza.

Novos rumos da estética

Vivendo sobre a face do globo terrestre, envolto em obscuridades, como o ser, a alma e o infinito, o homem muitas vezes, pergunta-se a si mesmo o que seja no abismo dentro de si como o espírito e no abismo fora de si como o infinito. Conhecendo o que está longe, sabendo marcar a marcha do planeta, não decifra o que lhe é bem íntimo como o segredo de sua própria vida. De pouco lhe adianta passear triunfante pela atmosfera, sondar os abismos dos mares, penetrar as funções das células, ligar o pensamento de antípoda a antípoda, pela virtude de uma faísca elétrica, se não conseguir matar a sede de verdade que emerge dos abismos mais profundos do seu ser, como exigência imperiosa que o faz levantar a fronte para os céus, na expressão do poeta latino:

Sustulit et erectos
Ad sidera tollere vultus.

Nesta ânsia em procura da verdadeira fonte, donde jorra a linfa do puro conhecimento, o homem compreende perfeitamente que é mais fácil assinalar a paralaxe da nova estrela do que marcar a sua própria situação no universo. As concepções mais diversas surgiram em todos os tempos, mas a humanidade quase sempre esteve dividida em dois grandes campos. É assim que parte se julga um miserável joguete do acaso, oriundo do fatalismo mecânico de múltiplas forças ou que se assemelha a uma larva que nasce, transforma-se e morre sem consciência de qualquer outra finalidade nesse evoluir contínuo das coisas. Para tais, viver é aquilo que Semíramis dava ao povo de Babilônia, isto é, fausto, grandeza e sensualidade. Foi este mesmo aspecto da vida que criou, nos tempos modernos, outra forma social, a qual chamamos de materialismo, cuja concepção mais extremada trouxe para o cenário do mundo o comunismo.

Padre Ponciano Stenzel dos Santos, líder integralista e nome destacado na filosofia, na psicologia, na sociologia e na estética

Em oposição a esta visão unilateral do mundo e da vida, o espiritualismo, encarando o papel do homem em relação ao seu destino, procura encaminhar todas as forças para a realização de sua finalidade, que é a união com Deus. Nesta marcha para o infinito, compreende o homem que também está incorporado à hierarquia dos valores do universo, criado pelo Onipotente.

Enquanto o materialismo renuncia ao ideal para se atirar aos braços da matéria, o espiritualismo procura realizá-lo, na compreensão exata da finalidade humana sobre a terra, e no destino que aguarda o pobre viandante na sua marcha em demanda da eternidade.

O universo real e imaginário está constituído de um número inexaurível de seres, que podem ser encerrados dentro dos conceitos de verdadeiro, de belo, e de bom. Estes conceitos transcendentais formam gêneros supremos que não se enquadram nos limites de uma rigorosa definição, apesar de formarem a base do conhecimento metafísico, ético e estético. Tais noções abstraem-se dos mesmos seres, mas sob aspectos diversos nas suas razões formais.

Devido à generalidade de tais conceitos, costumam os filósofos dizer que:

Todo ser é bom: Omne ens est bonum

Todo ser é verdadeiro: Omne ens est verum

Ambos se convertem em belo: Impulchro convertuntur.

Na Idade Média costumavam os escolásticos repetir o dito de Santo Tomás que “belo é o que visto agrada” (1.Q.V, a. 4, ad 1.). É digno de nota que para o anjo das escolas o belo consiste na visão agradável não só aos olhos dos sentidos, como também da alma e da inteligência. O mesmo santo doutor estabelece as notas pelas quais poderemos determinar o conceito objetivo do belo de uma maneira absoluta e independente das próprias coisas belas. Para algo ser belo se exige integridade, harmonia e esplendor. O senso comum dos homens não costuma chamar de belo o que não é íntegro. As coisas trincadas, defeituosas já trazem consigo algo que repugna ao conceito de beleza. É assim que não chamamos bela uma fronte calva, um membro decepado, uma educação mediana, uma fé duvidosa. A integridade é, portanto, a plenitude do ser nas suas partes. Faltando alguma delas, esta plenitude está prejudicada e o transbordamento das perfeições é mais difícil.

A segunda nota é a harmonia ou proporção das partes no conjunto. Pela harmonia se dá uma justa distribuição dos componentes do todo. Cada parte deverá estar no seu devido lugar e na sua própria função. É deste modo que nasce a unidade na variedade. Faltando tal proporção, rompe-se o equilíbrio da harmonia e, consequentemente, desaparece a unidade do todo.

A harmonia e a integridade, ainda que imprescindíveis, por si sós não constituem a beleza. Uma máquina, por exemplo, pode ter todas as suas peças e nos seus justos lugares, sem que a consideremos bela.

É necessária, portanto, a terceira nota, o esplendor e temos assim o belo na sua razão formal.

Todas as coisas são belas quando uma certa claridade as acompanha, as faz ressaltar aos nossos olhos, cativar os nossos sentidos. Vemos assim que não andou errado o velho Platão quando definiu a arte por “esplendor da verdade e do bem”.

Os dois primeiros elementos, a integridade e a proporção, formam a causa material do belo, mas o último é o esplendor, é a sua causa formal. Quando falamos em causa material entendemos tudo que constitui uma coisa materialmente, assim num livro será: papel, tipo, tamanho, cor, peso, etc. A causa formal, porém, é o que constitui a coisa como tal, o que a especifica. Assim chamamos a um livro de gramática não pelo papel, mas pelo pensamento do autor, que será portanto, a sua causa formal.

Daqui podemos, por analogia, concluir o que seja causa formal do belo. O que constitui uma coisa especificamente bela é o esplendor. É por isto que diz o anjo das escolas que para a razão do belo concorrem a harmonia como sujeito e a claridade como sua essência.

Em que consistirá este esplendor, haveis de perguntar?… Não consiste num adorno, acrescido ao ser, não consiste nas roupagens, mas no próprio luzimento que as cousas trazem em si. Este luzimento é de ordem ontológica. Tudo difunde luzes de emoções estéticas. Todos os objetos, quando colocados aos raios do sol da inspiração adquirem ainda maior reflugência, passando pela gruta encantada da vida artística, onde há eco para todas as harmonias, luzes para todas as belezas. Eis porque dizemos que a concepção estética é universal no seu gênero (q. 39, a. 8).

A falta de proporção ou integridade são noções negativas e que portanto não existem, como seres. Assim vemos que as próprias coisas chamadas feias, adquirem, pela criação artística, beleza admirável. o inferno é feio, o assassinato também. Que coisa mais bela, porém, do que o inferno de Dante ou o assassinato de Cesar no senado romano na tragédia de Shakespeare. Chamamos belos, porque nos reproduzem verdades, ou históricas, ou naturais ou sobrenaturais, com certo luzimento à imitação de seus modelos.

Assim a extensão do belo é total, compreendendo o visível e o invisível, o criado e o incriado. Identifica-se com a verdade no ser e se diferencia na razão. Verdadeiro é todo ente segundo a sua adequação ao intelecto, e belo é o ente segundo tal adequação, que seja apta a causar agrado pela visão.

A diferença entre o bem e o belo está em que o bem só aquieta o apetite pela posse do objeto, ao passo que o belo o aquieta só pelo seu aspecto ou conhecimento. Vemos assim que o belo acrescenta uma certa ordem à força cognoscitiva.

Daqui compreendemos que o belo não é, por sua natureza, amado com amor de concupiscência, porque o apetite não se deleita com o belo como se fosse um bem para si, mas o admira e nele se enleva.

Saiamos do mundo dos conceitos e procuremos entender a arte num exemplo. Contemplemos Michelangelo, tendo diante de si um bloco de mármore. Primeiramente ele tem uma ideia-exemplar, criação sua. Esta ideia-exemplar irá causar alguma coisa, porque irá influir no ser de outrem, no ser da imagem. Tudo que houver de perfeição na imagem deve estar também na ideia-criação de Michelangelo. A imagem pode não exprimir perfeitamente tudo o que ele ideou e aqui temos então os graus da perfeição artística: uma obra não é perfeita pelo objeto, mas pela perfeição com que reproduz o que estava na mente do artista.

A ideia na mente de Michelangelo é o exemplar, o modelo, a cuja semelhança ele faz o seu Moisés, imagem do exemplar. A palavra imagem vem do verbo imitar. Não havendo, pois, esta imitação da imagem para com o ideal criado pelo artista, não haverá verdadeira arte, mas uma simples cópia, ou fotografia do natural; é o erro em que caiu a escola naturalista, cingindo-se a copiar a natureza, sem idealizar o belo.

Para a noção de arte não é suficiente a semelhança, que existe na cópia, na fotografia, é necessária a imitação, a causalidade interna da mente para com um efeito externo. Toda imagem é imperfeita, porque é uma imitação, não é a realidade. Se o artista conseguisse transmitir toda a vida e expressão espiritual da sua ideia para a imagem teríamos então uma imagem perfeita. A imagem teria então a mesma natureza que o seu exemplar. Se o artista que ideou o Laocoonte pudesse transmitir ao mármore o movimento das serpentes marinhas e fizesse falar realmente pelos olhos e pelos músculos todos os horrores da agonia, teríamos assim uma imagem perfeita, mas sabemos que ali não há nem serpentes, nem movimentos, nem estertores de agonia, mas apenas uma ilusão de tudo isso…

Estátua de Laocoonte, no Vaticano

Há no homem uma imagem muito perfeita, é a sua ideia. Toda ela é imagem por sua própria essência, porque toda a sua razão de ser é estar feita à imitação do seu exemplar. Assim, toda ideia é imagem fidelíssima de alguma coisa que foi conhecida pelo entendimento que é faculdade representativa.

Esta ideia em Deus é perfeitíssima, porque pelo mesmo que é ideia é imagem também, por sua essência, produzindo-se toda à imitação do seu divino modelo, tota et totaliter como se diz na linguagem das escolas. Traz-nos isto à lembrança o afresco de Rafael na Capela Sistina, onde vemos o Pai Eterno, iluminando a noite dos tempos, no primeiro “fiat” animador dos movimentos. O Pai olha para as divinas perfeições de sua imagem, que é o Verbo: esta imagem será o exemplar, o modelo, à cuja imitação será criado todo o universo. Parece-nos o estar vendo arrancando perfeições inexauríveis das formas da sua Sabedoria, para adornar as criaturas, lançá-las com hierarquia ao tempo e ao espaço, para descreverem numa consonância de luzes, cores, movimentos e vida a epopéia grandíloqua da Criação.

Assim, o Verbo é o arquétipo de toda arte, é a expressão, é a linguagem do Pai, falando através das criaturas que dele recebem as belezas da existência, da força e da vida.

Cristo assim é formosura dos seres formosos, fortaleza dos seres fortes, vida dos seres viventes!

Cristo é assim o belo ideal, absoluto, enquanto as criaturas são o belo relativo, imperfeito, recebendo alguns raios de luz, deste sol infinito de beleza eterna. Assim vemos que há um conceito absoluto de arte e um conceito relativo. Eis porque dissemos a princípio que o conceito fundamental da arte é total, incorporando o criado ao incriado, subordinando a criatura ao seu Criador.

Afastar-se de Cristo, portanto, é abandonar as formas eternas e imortais do espírito. Procurar a matéria como absoluto é o mesmo que desconhecer os traços de sua luminosa origem, é perder-se na noite do erro. A arte integral deverá, portanto, ter esta tendência para Cristo, porque ela vem de Cristo e, à semelhança da alma difundida em eflúvios artísticos, arranca dos seus arpejos uma concepção sempre nova da vida, aquilo que Michelangelo Buonarroti aspirava, cantando na sua Vitória Coloma:

Filha de Deus, nossa alma aspira vê-lo,
Desprezando a caduca formosura,

Ela em seu giro eterno só procura
A forma, o tipo universal do belo.

(Trad. de João de Deus)

Sentido revolucionário da estética

Se a arte fosse, como queria Herbart, simples reprodução de formas belas ou, como queria Hegel, simples conteúdos belos, ou como entendeu Benedetto Croce, “intuição”, visão de um mundo interior, nós não teríamos propriamente a arte no seu sentido revolucionário. A arte não é uma reprodução, uma visão, mas é uma criação, um novo sentido de vida, uma revolução.

Criar é próprio do gênio e não é sem nenhum motivo que a sabedoria antiga divinizava os gênios, achando traços de semelhança entre as suas gêneses artísticas e a gênese dos mundos pelo Criador. Na elaboração da criação artística, aparece primeiro o real, a natureza ou a história, que fornece o material ao artista. Segue-se um processo interno do espírito, uma apreensão da fantasia.

Se a imaginação trabalhar completamente independente do real, da natureza, deixará de produzir uma obra verossímil, para produzir quimera. Se, por outro lado, o artista não tiver em vista os “fantasmas” por ele concebidos e elaborados, mas quiser simplesmente representar a natureza, não terá dado criação artística, mas simplesmente cópia ou fotografia. No primeiro caso temos a falta da escola idealista, no segundo o erro, tão em moda, do realismo artístico, em todas as suas formas exageradas e decadentes do verismo, do cubismo, do futurismo, do dadaísmo…

O sentido criador e revolucionário das artes encontra-se na teoria novíssima de Dulce, explicada perfeitamente por Francisco Salvador Brossa. Distingue ele expressão e representação, dizendo que esta acrescenta àquela o poder de comover e exaltar a fantasia…

Abandonou assim o trinômio croceano de: intuição-expressão; expressão-forma; forma-arte, porque este trinômio se apóia essencialmente na equação: intuição = forma. Preferiu o trinômio de De Santis: arte-forma; forma-fantasia; fantasia-representação, dizendo que à novíssima concepção estética deve ainda se acrescentar a equação: potência-representativa = representação-exaltativa.

Conforme esta teoria nós temos no primeiro momento do processo elaborativo da arte, o real se refletindo na fantasia; no segundo a fantasia elaborando, reflexamente, o seu objeto pela incubação das imagens, e no terceiro momento vemos a nova forma na existência que reveste a imagem dos fantasmas concebidos. Esta nova forma não é uma simples reprodução da realidade, mas tem fisionomia e vida própria, é uma verdadeira criação, capaz de despertar as emoções estéticas.

Em tal concepção a arte é um reflexo da vida e da natureza do homem, ao contrário do que muitos pensavam que o real da arte fosse o mesmo real da natureza e da história. A arte não deve ser, portanto, chamada verdadeira, mas sim verossímil. Com isto não queremos destruir o fundamento objetivo das artes. Se fosse a arte uma mera questão de gosto subjetivo não poderia haver técnica da arte, que deve, por sua natureza, se basear em leis e as leis não têm caráter individual. A técnica da arte é, portanto, baseada na ciência da arte. A ciência se sobrepõe, com suas leis, à evolução dos tempos. Errou, portanto, Augusto Comte, fazendo da arte um simples derivado da evolução dos povos, negando assim o seu fundamento real na invariabilidade da essência humana. Errou Oswald Spengler, atribuindo uma alma a cada cultura isolada, e fazendo da arte mera expressão da cultura, subjugou-a in totum a esta alma, perdendo assim o seu fundo de identidade humana. As leis da estética são tão matematicamente certas como as leis da física.

Observemos os dois sentidos chamados artísticos: o ouvido e a vista. Ninguém ignora que o som é um número determinado de vibrações. Helmholtz exigia sessenta vibrações, por segundo, para que ele adquirisse feição musical. O som mais grave, porém, de um órgão, tem 30 a 32 vibrações, ao passo que os mais elevados, os mais agudos, chegam a ter 73.700 por segundo, conforme Destréz. Para um acorde musical se exigem espaços matematicamente exatos de vibrações. A natureza das escalas maiores é a desenvoltura de uma certa alegria e triunfo, a das menores uma suave melancolia e a das cromáticas profunda tristeza. O ritmo ou é rasgado no binário e temos a violência, a paixão e o heroísmo; ou é embalado no quaternário e temos o cântico de berço com que a mãe adormece suavemente filhinho.

O que se dá com o mundo objetivo dos sons também se dá com as cores. O encarnado, que é excitante, tem o seu correspondente no compasso binário, o verde, o azul acalmam os nervos e envolvem a alma em suaves embalos. As linhas e os contornos também correspondem a determinadas emoções: o verticalismo geométrico será como o binário na música, o horizontalismo será como o quaternário. Assim temos de dizer que do conjunto destas leis primitivas, é que nascem as possibilidades dos artistas criarem obras que sejam capazes de despertar emoções. Não devemos, porém, confundir esta base objetiva com a arte que na sua essência é mais subjetiva, porque é emoção-criação.

Fora de nós não existe a arte a não ser fundamentalmente. Senão vejamos. 

Na natureza, no real físico, não existe propriamente emoção bela, mas somente o fundamento para que os nossos sentidos artísticos reajam com tais impressões. Na natureza existe a integridade, a proporção, o movimento, o esplendor, mas o que dá o caráter específico à emoção do belo, está no conhecimento do homem.

O cientista Doppler, querendo provar a subjetividade do som, observou uma locomotiva apitando a toda velocidade. À medida que a locomotiva se afastava o som subia e perpassava por toda a escala. Daí concluiu ele que o som variava, porque variavam as vibrações em razão das distâncias, e por conseguinte, porque as vibrações excitavam diversamente o tímpano e o nervo auditivo. Não há, portanto, som nas cordas de um piano, não há som no badalar de um sino, como crê o homem vulgar, há apenas o fundamento para determinar um som subjetivamente, vibrações que existem fora de nós não são sons, são movimentos…

O mesmo dizemos das cores que são vibrações etéreas sobre a matéria. Nada é branco, ou preto, ou encarnado ou azul. Das diferentes superposições e absorções dos corpos é que dependerá a determinação de reagirmos com a sensação de uma determinada cor.

Vemos assim que as artes do belo têm o seu fundamento objetivo, mas a sua especificação subjetiva. Objetivamente não há mais nada no mundo físico do que movimento e matéria, subjetivamente, porém, encontram estes movimentos e traços, na alma emotiva do homem, a gruta misteriosa que tem eco para todas as harmonias e reflexos mágicos para todos os matizes.

Concluímos assim que propriamente não existe belo físico, porque se o belo está fundamentado sobre as leis do físico, do verdadeiro, ele não deve ser confundido no seu conceito original com o real da natureza, como o confundiu Hegel e como também confundem as escolas naturalista, hedonista e utilitarista.

Agora podemos compreender o sentido revolucionário da arte. Deus criou no universo três coisas bem diversas: o átomo, a célula e o espírito.

O átomo estreleja como luz no primeiro “fiat”. Traz esta substância em si uma estrutura. De seu enlace e desenlace nasce o “cosmos”. O ritmo do átomo da estrela é arder. Mas arde, apaga-se, desintegra-se e volta ao nada. Todo o mundo físico é um desintegrar-se de forças em procura do equilíbrio.

Para reparar a existência que assim decai, Deus inventa um novo milagre e cria a célula. Dentre as salsas ondas do mar aparecem os protozoários e começam nas águas uma nova ordem, a biológica.

Mas também esta vem ferida na sua origem, porque depende do primeiro elemento que decai. Átomo e célula, não retendo a substância, faz-se mister uma nova criação. Na massa inconsciente de uma vida fisiológica, aglomerado de átomos e células, irrompe a consciência, centro de unidade e de agregação do universo, ferido pela morte da desagregação. O que é múltiplo adquire com esta criação a simplicidade e a simplicidade por natureza é a indestrutibilidade.

Temos assim o homem feito a alma viva do universo. Pela sua mente de filósofo e de esteta passa o turbilhão dos mundos. Sua alma, antena admirável, vencendo o tempo e as distâncias, cria um novo mundo que é o mundo das artes.

À semelhança dos sistemas planetários que, em aspirais vertiginosas, caem para os seus sóis, todo o cosmos desce em aspirais para a mente do homem, para daí, transfigurado, sublimado, espiritualizado, subir até o seu Criador, donde proveio de maneira diferente. É o homem que pela estética espiritual evita a derrocada física e biológica do universo. As formas adquiridas, em contato com o universo, nas luzes profundas do seu ser, conservar-se-ão, através da eternidade; os tipos não se diluirão com o aniquilamento físico do universo, porque a consciência estética salvou a derrocada da célula e do átomo.

É assim que a revolução do cosmos gera a revolução estética pelo sentido da integração e harmonização daquilo que no universo se desintegra.

À semelhança de uma turmalina preciosa, que um homem incorpora, por amor estético, à sua irrigação, aí ela, transformada em imagem luminosa, viverá toda eternidade.

Compreendemos agora que há duas artes: uma falsa, que em vez de integrar o universo a si, se integra no universo, se fataliza nas suas forças mecânicas e como tal, sem as luzes imortais do espírito, desaparece no nada, como desaparecem o átomo e a célula; outra que integra o universo a si, pelas forças unificadoras do espírito, mediante a criação sublime do gênio, e esta é a arte espiritualista, a única e verdadeira arte que nunca tem crepúsculos, porque traz em si mesma todas as luzes da sua vida, pois recebeu em si o universo pelo seu modo sensorial-espiritual.

É esta ordem admirável do universo, que, adquirindo brilhos na mente do homem, realiza o mundo estético. O gênio de Santo Agostinho já concebera admiravelmente este conceito, quando definia o belo por splendor ordinis, esplendor da ordem. O mundo todo é ordem em revolução perpétua com os desequilíbrios. A marcha gravitante do planeta pelos espaços, o viver e morrer contínuo dos organismos, a pétala da flor, a asa do inseto, a gota de orvalho e o oceano imenso, a faísca e o vulcão, o sorriso da criança e a lágrima do ancião, a espuma da ira e a prece da caridade: tudo isto pode encerrar motivos profundos de beleza.

As artes, como criação, são revolucionárias, trazem nas suas formas, nos seus conteúdos emotivos, impulsos e diretivas à humanidade. Ninguém negará que a renascença, o romantismo, são revoluções, isto é, novos rumos de vida cultural. A arte assim concebida tem a sua infância, a sua juventude, a sua velhice. Isto se chamaria em linguagem moderna três etapas ou três operações: a apolínea, a dionisíaca e a mística, para usarmos de uma expressão recente, não, porém, no sentido spengleriano que destrói a continuidade das três épocas.

A apolínea, que se caracteriza por um anseio de vida, traz em si o senso das medidas e proporções, é como o helenismo na sua manifestação geométrica e lógica. A escultura de Fídias pode ser o protótipo desta fase. Nela se sente a aspiração da ideia em coincidir com o seu exemplar. As imagens, desde que nascem, tendem para o movimento próprio do espírito, e o apolíneo é isto, precedido pela ordem do ritmo, da melodia, da harmonia.

Reconstrução de Zeus, de Fídias

Assim o típico do apolíneo é a plástica, isto é, a maneira mais alta que pode alcançar o mundo físico, mas é apenas um começo de arte, porque as fortes emoções não são suscetíveis de representação plástica. A plástica não passa de ilusão, é o ensaio do esteta, o seu primeiro exprimir, quase sem sair do repouso.

A segunda etapa, é o estético dionisíaco: é a juventude, a época das paixões. Suas manifestações mais elevadas são a música, a dança, a tragédia. Foi o cristianismo que deu a feição do trágico da vida humana, vencido através das esperanças de uma vida melhor. O dionisíaco é a estética no mundo das paixões e da vontade. Ele teve o seu sentido mais romântico no predomínio da paixão ilimitada; mas tem no cristianismo a síntese das paixões dignificadas, pelo ideal em Deus, feito homem para sofrer as penas do mundo, resgatando-o de seus lábios. Realizou-se mais nas tragédias da história cristã, do que nas tragédias gregas, como as de Ésquilo, em que o protagonista, ferido pela desventura, vê-se entregue a si mesmo, no abismo do seu abandono.

O místico, que é a terceira etapa, corresponde à transposição da existência terrena para um plano divino. Esta doutrina supera a própria realidade estética, nela está expressa a salvação do homem e do cosmos. Romper o equilíbrio da realidade, libertar-se do estreito círculo da vida humana, pela vitória sobre as paixões, é elevar o físico e o moral a mais alta categoria do espírito, é a divinização dos antigos pelo “Sofia” e pelo “Hagia” é a elevação cristã à ordem sobrenatural pela graça.

Vemos exemplos admiráveis desta etapa na música polifônica e na pintura bizantina, onde aparecem claramente a força da vontade e as paixões, ordenadas ao caminho da felicidade celeste. É assim que a manifestação de Deus torna-se uma elevada estética. Encontramos aí além do ritmo, da melodia e da harmonia, o contraponto na música e na liturgia. É fácil ver como é que um povo pode ter o seu desenvolvimento artístico através destas etapas.

Não depende de uma evolução fatal, universal como querem alguns, mas principalmente das correntes que se formam na história pela educação do povo. O apolíneo pode vir na época presente como o místico já podia existir no tempo do antigo Egito. Assim, o julgamento de uma obra de arte não será outra coisa senão definir a tendência apolínea, dionisíaca ou mística que a obra de arte traz em si mesma.

Papel das Artes no Brasil

As artes, para desenvolverem uma influência educadora no povo brasileiro, necessitam de um clima propício.

Quase desaparecidas do cenário de nossa vida social, terminarão por morrer completamente, diante do sentido mecanizador da vida moderna. Ninguém hoje se importa de cultivar este terreno fecundíssimo de suaves emoções, e de justas alegrias. O dinamismo ganhou tudo, embotou a sensibilidade do homem moderno, que precisa de excitantes fortes, brutais, para sentir emoções. Apareceu o sentido quantitativo da vida moderna, em que se olha muito para fora e nada para dentro. Este sentido quantitativo está por toda parte na expressão mastodôntica do arranha-céu, na violência atordoante do jazz, nas competições de realizações mecânicas, no record!

Os gregos também cultivavam esportes, mas procuravam a estética e o equilíbrio da vida; os modernos é para ostentarem a brutalidade da força. O povo deseducou-se esteticamente, enche os estádios, gasta dinheiro, faz viagens para ver um homem esmurrar outro homem. Estamos como na época da decadência romana, em que as multidões no anfiteatro de Flávio se contentavam só com “pão e jogos”.

O Brasil, através dos seus Ministérios deveria proporcionar ao povo meios de se educar artisticamente. Não se deverá coibir a livre expansão artística, mas auxiliar-se materialmente para que as revelações artísticas do Brasil se desenvolvam. Estejamos certos, a arte, representando a paisagem brasileira, despertando as emoções do mundo que nos rodeia, será um dos melhores fatores da unidade nacional. Um povo é filho de suas grandes emoções, e as grandes emoções são transmitidas principalmente pelas artes. Se a França, ameaçada, reunia todas as suas reservas e, aos acentos patrióticos de Rouget de Lisle, cantava a Marselhesa; se a Alemanha cultivava o seu Volkslied para consolidar a alma nacional; se a Itália, esfacelada, vivia nos tercetos de Dante; estejamos certos, o Brasil também um dia poderá consolidar sua unidade nacional, porque já está educando a sua juventude, que canta o hino nacional com o mesmo entusiasmo com que o cantaram nossos soldados, morrendo pela pátria nos campos de defesa das nossas instituições.

Padre Ponciano dos Santos
“Arte e Civismo”, 1947