Segue o texto Plínio Salgado na Tradição do Brasil, do jusfilósofo, professor universitário, historiador das ideias políticas e doutrinador tradicionalista espanhol Francisco Elías de Tejada. O referido texto, escrito em 1977 e originalmente publicado no segundo volume do livro Plínio Salgado, in memoriam, dado à estampa em 1986, se constitui provavelmente na melhor análise do pensamento e da obra do grande cavaleiro do Brasil Profundo que foi e é Plínio Salgado, encarnação viva do nosso povo e descobridor bandeirante das essências da nossa Pátria, como escreveu Tejada. Foi mantida a grafia original do texto, traduzido por Gerardo Dantas Barreto.
PLINIO SALGADO NA TRADIÇÃO DO BRASIL
Francisco Elias de Tejada *
(tradução de Gerardo Dantas Barreto)
1. Como me lembro de Plínio Salgado
2. A marcha do seu pensamento
3. A reação contra o mimetismo estrangeirizante
4. A idéia do Brasil
5. Homem da Contra-reforma
6. A Tradição brasileira
7. Teórico do tradicionalismo político
8. Apóstolo e profeta do Brasil
Sevilha, Abril de 1977
1. Quando se vai aproximando de nós o final da nossa peregrinação terrena, é delicioso poder volver os olhos para os dias de ontem, a fim de recordar os fatos ou as pessoas que mais tenham influído em quem agora recorda os avatares da existência que se finda. Por isto, hoje constitui para mim especial deleite do espírito a memória daqueles já longínquos dias de 1942, nos quais, sobre o horizonte de um Portugal católico, ordenado, salazarista e ainda imperial, tive a sorte de tratar com aquele homem extraordinário que foi Plinio Salgado.
Muitos tem-no descrito fisicamente. Menotti del Picchia pinta-no-lo como “um caboclo enxuto, nervoso e formidável” (1). Godofredo Filho traça-nos seu perfil como de “figura serena e triste” (2). Lembro-me dele na sua imagem de mediana estatura, magro, um punhado de nervos aguçados em penetrante inteligência, mãos frias e grandes, moreno, rosto afilado, olhos inquietos que desde longe falavam de quem vive vidas intelectuais recônditas, todo o corpo refletindo a densidade de uma alma grande, a julgar por seus constantes gestos de infinitos nervosismos; crescia ao falar, quando as palavras, saindo-lhe do fundo do pensamento, aureolavam a fragilidade do corpo com esse halo que circunda os profetas. Porque Plinio Salgado, mal se trocavam palavras com ele, aparecia como o profeta incandescente e sublime de seu povo, como a encarnação viva do Brasil melhor. Daí que sua figura seja inolvidável e me permaneça na memória com a graça de haver conhecido em sua pessoa um dos homens mais geniais com quem em minha vida haja eu deparado. Quem visse Plinio Salgado, uma só vez que fosse, não poderia esquecê-lo nunca mais; ele nascera dotado da graça alada da sugestão que arrasta. Uma das coisas pelas quais terei de dar sempre graças ao Senhor é haver-me Ele permitido conhecer, amar, admirar o profeta do Brasil que foi Plinio Salgado.
Conheci-o, ademais, em momentos de aguda desesperança, no tempo dos oito anos em que ele teve de ficar desterrado da sua pátria brasileira. Jamais houve alguém tão perseguido em toda a história do Brasil, diria ele mesmo no seu discurso de Porto Alegre (3). Por não ter querido pactuar com a ditadura totalitária de Getúlio Vargas, por causa da sua firmeza de concepção cristã da vida, sobre seus ombros, frágeis ombros de caboclo forte, choveram calúnias, afrontas, injúrias, insultos de toda espécie. Porém Plinio soube suportá-los “penetrando na penumbra do subconsciente da raça”, no dizer de Miguel Reale (4). Após longuíssimo caminhar, encontrara ele a verdadeira essência do Brasil. Ele era o descobridor da pátria na mais apaixonante das façanhas descobridoras que tenham tido lugar no Brasil desde a época dos bandeirantes. A sua biografia é a biografia do seu povo. Nada se há escrito nem poderá escrever-se de mais certo sobre Plinio Salgado do que aquela asserção sua no pórtico de Despertemos a Nação: “O drama do meu povo apoderou-se de mim” (5).
2. Nas veias de Plinio Salgado comungavam as variadas genealogias que forjaram a gente brasileira. Seu avô paterno, Manuel Esteves da Costa, era português, nascido em São Pedro do Sul, perto de Vizeu, emigrante para o Brasil em conseqüência da perseguição sofrida por causa das suas idéias miguelistas. Sua avó paterna, dona Maria Salgado Cézar, provinha, de um lado, de estirpe portuguesa, e, do outro, do famoso bandeirante Manuel Preto, o conquistador de Guaíra. Seu avô materno, Antônio Leite Cortez, procedia de Castela. Sua avó materna, dona Mathilde Sophia Rennó, juntava sangue alemão com o daquele Pero Díaz que fôra guardião das chaves da cidade de S. Paulo nos dias da fundação. Na linhagem intelectual de Plinio Salgado repercutem várias e díspares procedências, presididas sempre pela tradição sentimental e humana daqueles miguelistas que eram a Tradição portuguesa autêntica frente à invasão liberal européia que ia destruir na península ibérica a própria substância do verdadeiro Portugal.
Nasceu Plinio Salgado em São Bento do Sapucaí, no Estado de São Paulo, no coração da serra da Mantiqueira, que traça o limite com Minas Gerais. Seus primeiros anos estão marcados da desorientação nas afeições políticas e nas leituras. Entusiasma-se ele com a atuação política do mação Ruy Barbosa, de quem se desiludirá mais tarde quando, em A quarta humanidade, o tacha de superficial ao atingir sua maturidade intelectual (6). Suas leituras moviam-se então na linha do positivismo predominante. Em 1918, é que a leitura do malogrado Jackson de Figueiredo o aproxima de posições espiritualistas, fundadas no conhecimento da filosofia de Raymundo Farias Britto. Acabava ele então de ler Spencer, e na descoberta do espiritualismo encontrou a sua estrada de Damasco.
A mudança de perspectiva em 1918 é decisiva. Nas Notas manuscritas que do próprio Plinio possuo, a mudança aparece como contraste entre positivismo e cristianismo. Apenas convertido ao espiritualismo, desemboca ele no catolicismo mais fervoroso. Mostra que, ao se aproximar de Cristo, repugna-lhe a visão positivista de Cristo exposta por Ernesto Renan. Dizem-no as notas literalmente: “Havia recentemente lido Renan, e agora começou a surgir no meu espírito um vago desejo: o de escrever uma Vida de Jesus, capaz de se contrapor à de Renan. Esta idéia viverá vinte anos no meu espírito, até um dia realizar-se” (7).
Como homem de letras, a primeira repercussão teve lugar na literatura. Eis aqui como o próprio Plinio Salgado a descreve nas já aludidas notas: “O escritor que vai surgindo cada vez mais em Plinio Salgado pensa em publicar um livro que exprima a realidade da vida brasileira. Um dia, viaja ele pelo sertão da Estrada de Ferro Araraquarense, em companhia do Secretário do Interior do Estado de São Paulo, um dos homens mais eruditos do Brasil. Em Monte Aprazível, extremo da linha férrea nos sertões do Tietê, Plinio Salgado SENTE definitivamente o livro. Será um romance. Tortura-o, entretanto, a questão da forma em que deve vazar essa obra de arte e de pensamento. Em 1922 Plinio tinha tomado parte na Semana de Arte moderna, presidida por Graça Aranha, e da qual fizeram parte numerosos escritores, poetas e artistas da nova geração.
A ação revolucionária desse grupo não passara no entanto, até aquele momento, de uma atividade puramente teórica. Exceptuando as tentativas dos pintores e de alguns poetas, nada mais se realizara que concretamente pudesse contrapor aos padrões clássicos da literatura brasileira um novo tipo de forma e estilo. De 1922 a 1924 o livro de Plinio Salgado vem sendo arquitetado no pensamento do autor. Escreve-o em 1925. Intitula-se O Estrangeiro. Ali palpitam os problemas da fusão das raças no Novo Mundo, das angústias do pensamento contemporâneo, da política nacional, e, de modo mais profundo, da própria espiritualidade brasileira em choque com o sentido materialista do século”.
Não é possível descrever melhor a obra de Plinio Salgado do que como ele o fez nessas linhas. Em 1918 passa ele do materialismo para o espiritualismo, de Comte a Cristo, do positivismo ao cristianismo. A sua vocação de escritor egrégio impele-o à literatura, mas uma literatura a serviço dos ideais de um Brasil autêntico, e, porque autêntico, católico. O Estrangeiro foi para os críticos uma das cumeadas da literatura brasileira; mas, do ângulo em que aqui se analisa a obra pliniana, foi ele, também, a necessária análise sociológica da qual nascerá um pensamento robustíssimo, o mais brasileiro que dar-se possa. Muitos anotaram esse alcance sociológico: Virgínio Santa Rosa, em Personalidade de Plínio Salgado (8), Agripino Grieco (9), Afrânio Peixoto (10). Contributo de um sociólogo que estuda a situação de sua pátria para daí tirar conseqüências políticas. Com a sua agudeza característica, Jackson de Figueiredo, apreendeu o que O estrangeiro significava; acima dos seus maravilhosos méritos literários, e além do finíssimo estudo sociológico, O Estrangeiro é todo um programa político; é “um livro de esperança e de fé” na pátria brasileira (11).
Nada o prova melhor do que as duas outras novelas que integram a magna trilogia sociológica necessária para a formulação do programa político. Como novelista, Plinio Salgado procura estabelecer a tábua dos males pátrios, aos quais, como político, logo procurará dar remédio. No prólogo da segunda edição de O Esperado, traçou ele o resultado de suas indagações sociológicas sob a cobertura literária. Com O Estrangeiro, intentou compreender as causas da crise, os dramas sociais, as comédias da política, a podridão dos chamados intelectuais, a pugna subterrânea entre comunismo e nacionalismo. Em O Esperado estabeleceu os efeitos do capitalismo internacional, chave para entender a luta entre materialismo e espiritualismo. Em O Cavaleiro de Itararé, baseado na lenda popular do fantasma dos sertões, apresenta-se o quadro das revoluções sangrentas e dos títeres políticos manejados por cordões invisíveis (12). A trilogia novelística é o ponto de partida do pensador político, é a lista dos males do Brasil, é o negativo a emendar. O quadro pintado por Bauer em O Esperado constitui o retrato triste do Brasil enfermo que queima as carnes da sua alma de patriota (13).
A participação de Plinio Salgado no movimento verde-amarelista em 1927 e no movimento da Anta em 1929, juntamente com as suas atividades políticas de deputado estadual entre 1927 e 1930, são períodos de transição durante os quais vai-se perfilando o conjunto de suas idéias e aumentando os seus saberes no duplo plano do estudo das populações índias aborígenes e das doutrinas do marxismo. Para lhe arrematar as perspectivas faltava-lhe o conhecimento da Europa e da terra onde vivera Cristo, constante objeto de seus mais íntimos afãs. O ano de 1930 tem oportunidade de lhe completar a formação. Quando, a 4 de outubro, regressa à terra brasileira, está ele de posse de quanto necessita para empreender a missão de sua vida: brasilizar o Brasil. O Esperado em 1931 e O Cavaleiro de Itararé em 1933 são os últimos retoques iniciais. Os trezentos artigos publicados em A Razão entre 1931 e 1933 valem pelas primeiras mostras da sua esplêndida maturidade de pensador. O Manifesto de 7 de outubro de 1932, em que lança a Ação Integralista Brasileira, abre a etapa em que ele manterá desfraldada a bandeira do Brasil verdadeiramente brasileiro, frente aos políticos mesquinhos, suportando calúnias e perseguições, exilado e proscrito, num sistema coerente de elaborado pensamento. Não tem razão Arnoldo Nicolau de Flue Gut em Plinio Salgado, o criador do integralismo brasileiro, na literatura brasileira, ao opinar que em 1939 Plínio ainda carecia de um sistema homogêneo de princípios filosóficos (14). Permita-se-me dissentir do juízo desse bom e velho amigo; o que sucede é que Plinio Salgado vai depurando e aclarando incessantemente o seu ideário; porém sempre em torno de umas linhas-mestras, cuja fixação será precisamente o objeto do presente estudo.
O que Plinio Salgado levanta desde a sua conversão intelectual em 1918 são duas colunas solidíssimas: Cristo e o Brasil. O que Plinio Salgado nega são os termos opostos, as idéias estrangeiras que corrompem o Brasil e repelem o reinado social de Jesus Cristo: o liberalismo e a democracia, os totalitarismos de todo gênero, a filosofia positivista, a herança do século XIX. O resultado será o Integralismo como ação, como volta à Tradição brasileira; por meta intelectual e política, a aproximação cada vez mais profunda, de Santo Tomás de Aquino. Existe na obra de Plinio Salgado uma lógica evidente. Verdade é que, anos após ano, vão ficando mais claras as suas idéias, quer aperfeiçoando os conceitos, quer estabelecendo mais exatamente as suas posições; mas são exposições e esclarecimentos conservados sempre em torno daquelas duas temáticas centrais, de Cristo e da pátria brasileira. Com todos os defeitos que toda obra humana possui, e Plinio era um ser humano, a sua obra aparece majestática precisamente pelo que tem de coerente, pela lógica interna que anima o seu sistema, pela magnitude do pensamento que sabe elaborar uma teoria da Tradição brasileira com traços de granítico castelo, destinado a suscitas adesões para quem queira em tempos vindouros conhecer a substância do Brasil.
3. Elaborado no Brasil e para brasileiros, o sistema de Plinio Salgado nasce da contemplação das crises pátrias. O que move em política é olhar a mediocridade da vida pública, onde os governantes se medem pela possibilidade de serem eleitos, e onde os partidos não têm outros ideais a não ser a partilha das prebendas inerentes ao exercício do poder (15). Porém, Plinio Salgado aprendeu, nos estudos profundos tão bem aproveitados pela sua grande inteligência, que o mal é muito mais antigo, que o mal do Brasil se revela desde quando, no século XVIII, a história brasileira foi torcida pelos mações europeizados do absolutismo importado da França, tanto em Portugal como no Brasil. “A história portuguesa, assim como a brasileira, foi falseada desde o reinado de D. João V até os nossos dias”, lê-se em O Rei dos reis (16).
Com o que, o posicionamento político presente atinge dimensões históricas mais amplas para colocar-se no dilema de Tradição pátria contra a europeização destruidora e inimiga. Linha de contraste que durará sob o Império, no qual o afrancesamento de uma burguesia que suplantou a nobreza em seu papel dirigente, conforme ele apontara em O Cavaleiro de Itararé (17), é a nota peculiar de uma sociedade incolor e grosseira. A Elvirinha e a Nina, em O Esperado, são católicos à francesa, sem nada do catolicismo peculiar à gente do Brasil (18); o Teodorico de O Cavaleiro de Itararé pensa em francês, e em francês fala (19), versado na cultura francesa tanto como ignorante do que ao Brasil diz respeito (20). Figuras expressivas de novelas expressivas que, em A quarta humanidade, pululam em concordância perfeita com a teoria de que a crise do Brasil, já é, no século XIX, a renegação da substância própria. As palavras de Plinio Salgado são o cabal diagnóstico das enfermidades pátrias: “Essa chusma de catedráticos, de poetas, de legisladores, de economistas, de técnicos financeiros, de jornalistas, de pintores e músicos, sempre teve em alta conta as consagrações das palmas colhidas nas salas de aluguel da Sorbonne, os dísticos em relevo dos institutos científicos estrangeiros, as cartas de Renan, as críticas das revistas francesas e as referências do Times sobre a honorabilidade nacional. Em literatura, esses títeres eram lacaios dos salões de Paris, e em finanças não passavam de capachos às portas dos bancos do Tâmisa. Em filosofia eram divulgadores medíocres da obra alheia, e em política eram uns sovados serviçais das democracias imperialistas manobradas por ocultas forças escravizadoras. Toda essa fauna, que pedia idéias a Comte, a Spencer e a Haeckel, como pedia figurinos a Jean Patou, chusma que imitava o cepticismo de Anatole e tomava emprestado o canivete com que Heredia entalhava seus sonetinhos, e furtava uns cinzentos de Carrière para compor uns versos à Samain e enternecer-se diante dos canais de Bruges, e transformava o chá com torradas em “five-o-clock-tea”, para dizer paradoxos de Wilde e, mais tarde, as graçolas de Shaw, essa fauna imensa era apenas uma casca engelhada, que está caindo de podre. O isolamento da América do Sul foi completo, apesar dessa gente cosmopolita. Não tomaram conhecimento da nossa existência” (21).
Neste quadro ao vivo da desnacionalização do Brasil em tempos dos Império, Plinio Salgado não alude ao máximo dos europeizados, ao próprio imperador Pedro II, sem dúvida por motivos de respeito. Porquanto o Império foi no Brasil redondamente inimigo da pátria; a confissão de afrancesamento, vergonhosa e repugnante confissão de afrancesamento, que consta da carta de Pedro II ao Conde de Gobineau, datada de 4 de Abril de 1874 (22), é o indício supremo de como o Império, burguês, maçonizado e europeizante, simbolizou a antítese daquilo que Plinio definiu como sendo a essência do Brasil.
Não menos estrangeirado que o Império será a República, pois que ela trouxe foi “apenas a mudança de rótulos e de pessoas”, conforme se diz em O Cavaleiro de Itararé (23). Não foi brasileira a República, e sim mero prolongamento dos mimetismos da França, “cuja origem é francesa e se embebe na revolução de 1789”, como ele assegura no discurso de Porto Alegre (24). O século XIX inteiro, sob o Império como igualmente à sombra da República, redunda em simples europeização bastarda. É a confusa torre de Babel de que ele fala em A aliança do sim e do não (25); confusionismo ideológico de onde manam os males que angustiam a vida brasileira no século XX, pois o século XIX foi a “vasta sementeira de ventos de que estamos agora colhendo as tempestades” (26); origens da “tremenda Babel dos dias que vivemos”, repetirá ele ao prefaciar a tradução portuguesa de Pio IX de Villefranche (27). Toda obra de Plinio Salgado no seu afã de brasilizar o Brasil consistirá, por conseguinte, em repelir as ideologias estrangeiras, copiadas da Europa nos séculos XVIII e XIX. “Estamos fartos dos séculos XVIII e XIX, que insistem em viver no século XX”, declara ele em A aliança do sim e do não, com frase que é justamente a chave do seu pensamento político.
Daí combater ele as duas frentes da europeização destruidora do Brasil: o absolutismo totalitário e o liberalismo democrático, opondo-lhes a verdade da Tradição brasileira.
4. A definição do Brasil como Tradição é o final de uma longa caminhada de pensador, percorrendo a qual Plinio Salgado, sem o menor apoio de precedente entre os seus contemporâneos, foi construindo como Tradição católica a concepção de sua pátria brasileira; tateando idéias várias primeiro, e como doutrina cabal nos anos do seu exílio português.
Em 1931, o negativo do espetáculo deslumbra-o, e foi preciso todo o ardor de sua fé patriótica para continuar crendo nos destinos do Brasil. Em O Esperado, o quadro que Bauer pintou, como igualmente as sinfonias de Evangelho Tupan, delatam um Brasil em crisol de futuros, uma nação ainda por fazer (29). Em meados dos anos Trinta, o Brasil ainda é para ele o enigma de um colapso geográfico, de cuja variedade nascerá o “tipo futuro” do brasileiro na Geografia sentimental (30), fruto de um “instinto que ainda não se cristalizou” (31). Preponderância do fator geográfico que o impele a cingir o Brasil à luta do homem sobre o território em Nosso Brasil (32), e que ainda, em Como nasceram as cidades do Brasil, coloca o brasileiro nas gestas dos bandeirantes, conquistadores do solo que, em sua marcha, por onde passavam faziam nascer cidades” (33). Nos dias de luta da Ação Integralista, talvez por influência do seu admirado Euclydes da Cunha, e quiçá por sua própria condição de caboclo das idéias, Plinio Salgado identifica o Brasil com a terra e com o caboclo que a desbrava. O Zé Candinho de O Estrangeiro é a réplica patriótica e realista, vibrante e contundente, contra o urbanismo tarado de babélicas confusões (34); e, em A quarta humanidade, o Brasil será salvo quando o espírito do sertão penetrar nas cidades, quando triunfar sobre o confusionismo amorfo das urbes gigantescas, “o Brasil caboclo, o Brasil forte, o Brasil do sertão, o Brasil bárbaro e honesto”(35).
Era ele o poeta, todo olhos da alma, que descobria o Brasil na luta do homem com a terra, em concepção tão lírica como simplista. Não obstante isso, o fervor imenso do seu espírito arraigadamente cristão já o fazia vislumbrar que a vitória sobre o solo na ocasião suprema da epopéia bandeirante possuiu alcances mais profundos do que o do mero assenhoramento da terra; que foi a façanha cristã, que as bandeiras pelejaram “por dilatar o “Reino de Cristo”, que no Brasil sobre ser luta com o território adverso, constituia-se em elevada missão evangelizadora”: assim se expressa em Nosso Brasil (36).
Foi no fecundo exílio lisboeta que Plinio Salgado completou e aperfeiçoou a sua visão do Brasil pátrio. Ali teve ele a oportunidade de conhecer, em primeira mão, os clássicos da Tradição das Espanhas, quer os portugueses miguelistas, quer os carlistas castelhanos. Sei pessoalmente da sua fecunda e tenaz leitura de Juan Vázquez de Mella, o magno poeta e pensador carlista. Fruto de semelhantes leituras, meditadas na plenitude de seus talentos, Plinio Salgado vai referir o Brasil à continuidade missionária do materno Portugal. Vai agora falar na linguagem dos tradicionalistas hispânicos, e vai aplicar ao Brasil as idéias dos tradicionalistas hispânicos. Em Como nasceram as cidades do Brasil contempla ele a unidade nacional como o resultado do “gênio lusíada”, argumentando que “tão grande tradição, pelos brasileiros herdada dos portugueses, constitui a força aglutinadora por excelência” (37).
Com o quê, o Brasil é o que era no seio das Espanhas filipinas; monarquia missionária, ao invés do agnosticismo aburguesado e decadente em que se despenha a partir do século XVIII. Impulsionado pelo seu sólido fervor cristão, Plinio Salgado se enlaça com a verdadeira essência de seu povo, nascido daqueles portugueses chegados à terra americana “para fundar uma nacionalidade nova e integrá-la no grêmio de Cristo”(38). De sorte que Cristo e o Brasil são uma entidade só. “Sustentar seu Nome, o seu Ensino, e viver segundo o seu Espírito é sustentar a tradição lusíada e nacional brasileira, a honra da nação e as suas prerrogativas de soberania” (39). Como ficavam atrás os dias em que, no Nosso Brasil, apresentara ele como modelos os liberais Andradas, o mação Ruy Barbosa, o kantiano Diogo Antônio Feijó ou o revolucionário Tiradentes (40)! Nem sequer lhe valerão os nomes da trilogia insigne dos precursores, de Euclydes da Cunha, de Raymundo Farias Britto e de Alberto Torres, com serem os três tão egrégios brasileiros, trilogia na qual ele resumia a alma pátria no estudo Couto de Magalhães, decifrador de enigmas éticos, em 1939 (41). O Brasil é missão evangelizadora cristã e nisso concretizar-se-á a alma da pátria.
Plinio Salgado restabeleceu a exatidão histórica. É “o Reino pela expansão da religião católica”, em O Rei dos reis (42); é a continuidade do apostolado lusitano, em A aliança do sim e do não (43). Agora o Brasil não será a estrita conquista da terra, senão a empresa católica em concepção idêntica à dos dias da Contra-reforma hispânica; com efeito, em Como nasceram as cidades do Brasil concluirá ele que o Brasil, longe de ficar na tarefa inconclusa que ele julgara em meados dos anos Trinta, é nação completa desde o século XVII, e isto mercê da guerra de religião contra os protestantes instalados na Bahia, de onde nasce a nação brasileira: “Pode-se dizer que a consciência nacional despontou, definitivamente, nessa guerra” (44).
Em lugar de desbravar terras, a guerra religiosa contra os protestantes holandeses; ao invés de nação em gestação, nação conquistada desde o século XVII; para Plinio Salgado, o Império missionário e a Contra-reforma são a chave para a definição do Brasil. O Brasil é a perpetuação da Contra-reforma filipina. Plinio Salgado vai ver no Brasil o que os carlistas eram em Castela e Aragão, e o que os miguelistas foram em Portugal: os últimos soldados da Contra-reforma católica são os caudilhos que guerreiam contra a Europa.
5. Uma vez ganha essa perspectiva, o sistema pliniano será conjunto de idéias sólida e harmoniosamente fundidas sem fissuras nem falhas lógicas. Paladino da Contra-reforma, ele lutará contra a Europa sem concessão alguma; contra a Europa protestante e comtiana, contra a Europa afrancesada que é o inimigo maior da Tradição brasileira.
Em primeiro lugar, contra Lutero. “A história das desgraças do mundo contemporâneo começa nessa coisa que se chamou o livre exame, depois transformada em livre pensamento”, afirma ele em O Rei dos reis (45). Lutero, Calvino e Henrique VIII são “os inimigos de nossas pátrias e de nossa religião”, afirmará ele em A aliança do sim e do não, tal como poderia escrever um súbdito Felipe II (46).
Em segundo lugar, contra o positivismo, maneira máxima da europeização brasileira. As doutrinas positivistas são a origem do confusionismo de que o Brasil padece no século XX, lê-se em O rei dos reis (47); porque o positivismo deforma o ser humano com o seu experimentalismo de detalhes privado de horizontes integrais, argumenta Plinio em Direitos e deveres do homem (48).
Contra esses dois inimigos europeus, ergue Plinio Salgado o conceito integral do homem, conceito formulado por Santo Tomás de Aquino e assentado pelos teólogos de Trento. Em Direitos e deveres do homem, Plinio insiste dizendo seguir o que Santo Tomás ensina (49). A filosofia da história sustentada no discurso do Rio de Janeiro de 27 de outubro de 1946, é o providencialismo cristão conforme o jogo das causas primeiras e segundas da Escolástica, exatamente o contrário do homem tragicamente escravo da teologia luterana e do homem recortado à máquina do positivismo, ou seja, o homem livre e responsável definido em Trento em 1546 (50). Santo Tomás é o mestre dele, em A Aliança do sim e do não (51). O integralismo ficou encaixado em seus devidos horizontes: será a teoria integral do homem integral da Contra-reforma católica.
Plinio Salgado aludiu ao aperfeiçoamento ideológico do integralismo em A mulher no século XX, ao indicar as linhas da sua adesão ao pensamento tomista (52). A mim coube a altíssima honra de haver seguido mui de perto o titânico esforço com que ele queimou os seus talentos prodigiosos na empresa da aproximação à tradição católica da Contra-reforma filipina; nunca saberei se mais admirar a grandeza dos seus talentos ou a humanidade com que mostrava a sua alegria de homem justo cada vez que compreendia melhor a identificação do seu bem-amado Brasil com a secular guerra de Felipe II contra a Europa protestante; quando entendeu que a novidade do pensamento integralista, por ele tão proclamada em A quarta humanidade de dez anos atrás(53), era o que há de mais velho no Brasil, era a própria Tradição brasileira.
Ao retornar ao Brasil depois dos oito anos do exílio lisboeta, suas idéias são um perfeito sistema de doutrina. Ele não se cansará de desfraldar o estandarte do tradicionalismo brasileiro, será um tradicionalista herdeiro da Contra-reforma, o irmão de miguelistas e carlistas. “O de que o Brasil mais necessita é da grande consciência histórica das suas tradições”, proclamará ele em seu discurso de regresso (54). Ele é o porta-bandeira da Tradição contra “as ideologias estrangeiras” (55). Será essa a sua batalha “pelo bem do Brasil, pelo amor às nossas tradições”(56). “Ensinei aos brasileiros o amor da pátria e das suas tradições religiosas” (57); o integralismo perdura não obstante as perseguições, “porque a sua doutrina embebe as suas raízes na própria generosidade do sangue patrício e nas tradições espirituais da terra brasileira”(58), porque era “um grande movimento nacional baseado nas tradições cristãs da pátria brasileira” (59). Nos anos do exílio, o integralismo passou de entusiasmo nacionalista à concepção tradicionalista do Brasil.
6. Não quer dizer isso que ocorreram mudanças radicais em seu pensamento. No regresso do desterro, pôde ele assegurar com exata justiça não haver mudado o seu pensamento integralista, “que professo e professarei sempre”(60). O que aconteceu foi que, na meditação serena do desterro e no manejo dos clássicos espanhóis, o seu profundo sentido católico da vida deu lugar à universalização do conceito do Brasil, agora inserido na luta das Espanhas contra a Europa por Felipe II desfraldada.
Já em 1936, em Palavra nova dos tempos novos, Plinio Salgado concebera a pátria como entidade cultural, como “uma arquitetura moral e espiritual” (61). Juvêncio, que encarna o próprio Plinio em O estrangeiro, define a pátria, por sentimento vivo, como sendo “a voz do país saindo pela boca do homem” (62). Em A quarta humanidade, a pátria é uma realidade histórica patente e imperativa (63). Em Despertemos a Nação, a nação é um conjunto de forças materiais, morais e intelectuais, “um índice da tradição histórica, de raça, de costumes, de tendências, de caráter próprio” (64), com ingredientes políticos e econômicos, entre os quais a tradição é um a mais (65). Já foi superado o momento em que a doutrina política pliniana considerava a Tradição como um dos fatores componentes da nação, para passar a identificá-los ao modo de pensamento tradicional hispânico.
Em compensação, essa fusão está clara em Direitos e deveres do homem. Plinio separará o país, que é a terra a que havia reduzido o Brasil nos anos Trinta, separá-lo-á da pátria, que é mera subjetividade emotiva, e da nação, que é Tradição viva (66). Agora, nação e tradição já são uma coisa só. A nação vem a ser a Tradição atualizada, no sentido tomista do vocábulo, na instância de um determinado momento histórico; a Tradição é o que explica e justifica a realidade sociológica nacional; a Tradição é o fundamento da nação. O que era genuíno e admirável anseio nacionalista converteu-se em doutrina do tradicionalismo político. Sem alterar suas idéias capitais, mercê de uma simples remodelação espiritual, agora mais do que um nacionalista fervoroso, Plinio Salgado é o tradicionalista coerente que sabe explicar seus sentimentos patrióticos com a teoria tradicionalista das entidades nacionais.
7. Partindo desses ângulos visuais, num tradicionalismo primeiramente pressentido com anseios patrióticos, e depois arrazoado em completo sistema de pensamento, cumpre valorizar o que o integralismo nega: o liberalismo democratizante, os totalitarismos marxistas ou fascistas, o racismo e, inclusive, o falso tradicionalismo francês chefiado por Charles Maurras. Consideremo-los sucessivamente.
a) Com o seu ardor fogoso de grandíssimo patriota, o liberalismo foi desde sempre para Plinio Salgado mero instrumento de colonização estranha. Di-lo Urbano em O Cavaleiro de Itararé, ao caracterizar o liberalismo importado como fator para que os “yankees” dominassem o Brasil, valendo-se do qual “as empresas estrangeiras estendiam as suas garras”(67); seu acólito, que é a democracia inorgânica, resulta em Despertemos a Nação no meio de que se valem os poderosos do capitalismo internacionalista para matar o Brasil verdadeiro, para a “desnacionalização do país”(68).
Era a herança do século XIX, anti-cristão à moda européia, e Plinio Salgado aplaudirá as condenações decretadas no Syllabus por Pio IX, glosando-as com a sua maestria habitual. Jamais deparei análise mais completa dos danos que o liberalismo causa, do que as observações formuladas por Plinio Salgado na Introdução ao Pio IX de Villefranche, quando escreve: “Era a liberdade degenerando em liberalismo e licenciosidade, era a democracia transformando-se em desordem, era o começo de uma loucura que terminaria na tragédia, a que hoje assistimos, da inversão de todos os valores morais. A sua tradução política denominava-se liberalismo; a sua tradução ética chamava-se utilitarismo; a sua tradução religiosa designava-se pelo nome de indiferentismo, ou paganismo, dos nossos dias”(69).
A censura de Plinio Salgado condensa-se em três pontos: que acaba no totalitarismo, matando a própria liberdade que apregoava defender; que é o contrário da Tradição do Brasil; e que é uma satânica rebeldia contra Deus. Argumentos político, histórico e teológico que, na sua positiva brevidade, possuem a solidez das armas dialéticas demolidoras.
Ao primeiro, o posicionamento rousseauniano leva implícito o esmagamento das minorias pelas maiorias, de onde Plinio Salgado deduzirá que “o Estado totalitário é um resultado das democracias”, em O conceito cristão da democracia (70), e que a revolução bolchevique é o mero desenvolvimento lógico das premissas estabelecidas pelos revolucionários burgueses na França de 1789 (71).
Ao segundo, o liberalismo democrático é uma fórmula européia importada, uma entre as idéias estrangeiras hostis à Tradição pátria”. “Nos países de formação histórica fundamentalmente cristã, como o meu país e todas as nações da América ibérica, o combate à Tradição significa arrancar as raízes da nossa cristianidade; e quanto à prédica daquele liberalismo sem freios, já condenado por Gregório XVI, Pio IX e Leão XIII, e pelos seus sucessores, ela constitui o caldo de cultura mais propício à proliferação dos germes da desordem e da dissolução social, dos quais o comunismo é o maior de todos”, acentua ele em Direitos e deveres do homem (72).
Ao terceiro, é incompatível com a Tradição brasileira, porque Plinio Salgado definiu-a como tradição católica, ao passo que o liberalismo supõe a rebelião luciferina do homem contra Deus, visto que coloca a liberdade na “exaltação da vida, acima do bem e do mal” por Deus fixados (73). O liberalismo situa o homem acima de Deus, elevando-o a juiz do bem e do mal, sem levar em conta o que Deus manda e o que Deus proíbe; é o radical antropocentrismo negador da concepção teocêntrica cristã. Donde ser ele blasfêmia pura e simples, e, para o cristão inabalável que foi Plinio Salgado, a blasfêmia é o mais horrendo mal que pensar-se possa.
b) Por iguais razões combate ele o totalitarismo em todas as suas maneiras.
Em primeiro lugar, o totalitarismo marxista, na qualidade de herdeiro e aperfeiçoador do conjunto dos erros liberais. Aqui, mais não é possível do que aludir, de passagem, aos talentos polêmicos de Plinio Salgado na sua farta demonstração das contradições do marxismo, tal como consta, por exemplo, em A quarta humanidade (74); tema que é merecedor de estudo à parte, e qualificaria, por si só, Plinio Salgado como um dos maiores pensadores da nossa época. Baste aludirmos à agudeza com que ele assinala como a redução das questões ao apriorismo cientificista, por Carlos Marx elevado a dogma, imbica num apriorismo dogmático unilateral cimentado numa tábua de leis econômicas cuja contradição reside em oscilar irrevogavelmente no dilema de que: ou elas são verdadeiras, e neste caso a futura sociedade marxista carece de razão de ser, ou são falsas, e então ao marxismo faltam as bases científicas que seu fundador tanto encareceu.
De mais a mais, o marxismo é, tal como o era o liberalismo, a tentação satânica da rebeldia do homem contra Deus, o antropocentrismo que expulsa Deus dos altares para sobre estes deificar o homem. Capitalismo e comunismo, liberalismo e marxismo são iguais manifestações dessa rebelião blasfema, são as duas tentações de Lúcifer a Jesus em Vida de Jesus (75), dois irmãos siameses na negação de Deus (76). São expressões do ódio (77), são a antítese da religião do amor que Cristo pregara. Por isso, em O Estrangeiro, Lenine encarna o Anticristo (78). Com a altura de miras que o caracteriza, Plinio Salgado sobe das questões rasteiras da economia ao plano superior religioso, para condenar o marxismo, depois de pôr em relevo os erros científicos deste, lá dos cimos de sua sólida teologia de cristão brasileiro.
c) Algo de semelhante acontece com o fascismo. Uma enfiada de interesseiras calúnias, propaladas pela imprensa hostil, procurou apresentar o integralismo como forma brasileira do fascismo italiano; quando o certo é que Plinio Salgado, na sua atitude de católico granítico, sem tolerar a mais mínima concessão, respondeu sempre repelindo o totalitarismo nacionalista de Benito Mussolini. Em A quarta humanidade ele condena com palavras expressas o papel absorvente outorgado ao Estado pelo fascismo (79); condenação reiterada em Palavra nova dos tempos novos (80), e no contundente repúdio que consta do Despertemos a Nação (81). Portanto, se alguma coisa existe, claro como a luz do meio-dia, no pensamento pliniano, é que, em todos e em cada um dos momentos de sua vida a concepção católica do homem sustentada pelo integralismo era incompatível com a exclusividade do totalitarismo estatal postulada pelo fascismo. Em O Rei dos reis, essa repulsa é arrazoada conformemente aos cânones do mais estrito pensamento tradicionalista, ao repelir Plinio o “messianismo totalitário, que vê num Estado, de configuração biológica, o Messias cruel, absorvente, em seu próprio proveito e finalidade, dos direitos mais sagrados da pessoa humana” (82).
d) Dados tais pressupostos, a sua inimizade ao racismo aparece ainda mais positiva, uma vez tida em conta, ademais, a realidade etnológica brasileira. Em Despertemos a Nação, a censura ao racismo é irritação indignada (83). Em A Aliança do sim e do não, explica ele o erro de se imputar a falazes superioridades de raça o fato, muito mais desprezível, de haverem os países de gente loira possuído carvão em suas minas numa época em que o carvão era fonte da energia industrial (84). Argumento esse não somente caro aos teóricos do racismo hitleriano, senão também contra as fumaças de superioridade racial anglo-saxônia proclamados pelos americanos (85). E é que a consciência cristã da igualdade dos homens perante Deus era em Plinio o melhor argumento contra os racismos de toda a laia, germanos ou anglo-saxões.
e) Em sua vigorosa postura de católico coerente, também não admitirá ele as teses de Jacques Maritain, empenhado em acomodar o cristianismo à revolução de 1789 (86), porque isso supõe, sim, mais “uma abdicação vergonhosa da nossa fé cristã, já que implicaria substituir a palavra de Cristo, que é Deus vivo, pelos princípios proclamados por um punhado de homens agnósticos e rebeldes”. Descomunal blasfêmia seria que um cristão aceitasse a blasfêmia radical do antropocentrismo.
f) Finalmente, o pensamento de Plinio Salgado nada tem que ver com o falso tradicionalismo francês de Charles Maurras. Expressamente assinala-o Plinio em A quarta humanidade (87). Esta é matéria tratada exaustivamente por Arnoldo Nicolau de Flue Gut em Plinio Salgado, o criador do integralismo brasileiro (88), com profundidade que me exime de maiores considerações. Se bem que a disparidade nos anos Trinta aparece mais como pressentimento do que como argumentação. Foi ao manejar os clássicos do tradicionalismo hispânico, durante o seu desterro lisboeta, que Plinio Salgado completou aquela inata antipatia para com um Charles Maurras enquanto herdeiro do positivismo de Augusto Comte, na comparação com a doutrina tradicionalista espanhola de raízes católicas, e portanto a única admissível para o pensador brasileiro.
8. A tais negações expressas e argumentadas corresponde a concepção tradicionalista do poder político, por Plinio Salgado condensada em sistema de doutrina. Se o que caracteriza o pensamento tradicionalista é centralizar a ordenação política e social numa sociedade autárquica e robusta, frente ao liberalismo que só considera o indivíduo a-histórico, e o totalitarismo, que unicamente toma em consideração o Estado, Plinio Salgado é tradicionalista desde que nega a sociedade inorgânica liberal do mesmo modo que nega o Estado absorvedor da sociedade.
Para ele, o Estado tem a missão de ordenar a vida social, e nada mais; é “interferente modificador”, na expressão que está em A quarta humanidade (89); linguagem esta aperfeiçoada, no regresso do exílio, na afirmação contra qualquer totalitarismo, de que o Estado não é fim em si mesmo, senão apenas “um meio” e “um instrumento” ordenador, porém nunca suplantador, da vida das instituições sociais autárquicas (90).
Em Direitos e deveres do homem, a concepção tradicionalista de uma sociedade por si mesma constituída não dependente do poder estatal, em grupos que sejam os leitos naturais das liberdades; barreira contra as demasias do Estado e via social para o exercício das legítimas atividades livres dos indivíduos, esta concepção aparece exposta de acordo com critérios positivamente tradicionalistas. É a afirmação de que a sociedade está integrada pelos “grupos naturais que são o anteparo do homem na defesa das suas liberdades em face do Estado” (91); é estabelecer que as liberdades só podem ser exercidas através dos grupos naturais nos quais o homem se acha inserto pelo simples fato de nascer (92); é a visão da nação como conjunto de sociedades livres (93); é a conseqüência de que, se bem regulado, deve o Estado respeitar, sem jamais oprimi-las, as autarquias da família, do grêmio, da propriedade e do município, que são os condutos por onde o homem, nascido, movendo-se dentro deles, leva a termo o uso de suas liberdades (94).
Contra o totalitarismo ele opõe a sociedade autárquica; contra o liberalismo, afirma a sociedade orgânica. O pensamento de Plinio Salgado é tradicionalista até à medula neste ponto, regra de ouro para a definição do tradicionalismo político. Ali coloca ele a verdadeira liberdade e não nas falácias das mentirosas declamações revolucionárias; para ver até onde ele volvia as suas miradas, para avaliar como ele toma por meta a Tradição pátria, basta lembrar a sua apologia de “a lusitana antiga liberdade”, em O Rei dos reis (95). Tal como formulara a noção tradicionalista do Brasil, Plinio Salgado adscreve-se ao pensamento tradicionalista na totalidade das suas facetas.
9. Considerando o pensamento de Plinio Salgado com a fria imparcialidade do estudioso, a fim de aquilatar as linhas da sua obra de pensador, seja permitido a quem abaixo se subscreve ligeira referência à poderosa personalidade dele. A fecundidade dos seus talentos, a finura de suas observações, a luminosa vibração de suas palavras, tudo o que dele comovia com emoções, vinculava-se à sua dimensão de apóstolo. Num Brasil dominado por europeizados e mações desde o século XVIII; num Brasil cuja triste história intelectual é a de que ele “recuava, abandonando o traçado superior das suas tradições”, para o dizer com palavras de Euclydes da Cunha em O Marechal de ferro (96); Plinio Salgado soube sacudir de si a moda covarde da imitação simiesca, e pensar o Brasil como brasileiro de verdade. Desde quando, em 1918, encontra-se com o espiritualismo de Raymundo Farias Britto, o seu caminhar espiritual é a apaixonada e luminosa luta por encontrar a alma da pátria, soterrada sob os perseverantes mimetismos da Enciclopédia, do positivismo e do liberalismo. Nos anos Trinta a sua poderosíssima inteligência intui a via segura que, na madureza sossegada do desterro lisboeta, fixar-se-á na teoria certeira da Tradição do seu Brasil. Foi uma luta tenaz, na qual, sem desfalecimentos, sem antecedentes nenhuns, sem mais auxílios que a sua fé cristã e a sua paixão patriótica, ia ele elaborando a teoria brasileira do Brasil.
Luta esforçada na qual foi passando do patriota ao místico, do nacionalista ao tradicionalista, ganhando perfis de apóstolo e de profeta, esses traços que seduziam mal se tinha a ventura de conhecê-lo, de tratar com ele. Cristo chamou-o, e ele a Cristo seguiu, na certeza de que o serviço ao Senhor era a medida do serviço ao Brasil que ele tanto amava. Há na Vida de Jesus uma página sedutora que talvez explique a imensa grandeza humana de Plinio Salgado: aquela em que, ao descrever o chamado de Jesus a Tiago, ele comenta com tremores de apaixonada autobiografia: “Por todos os tempos, Jesus há-de proceder assim. E é preciso ter em alguma ocasião ouvido essa voz, para compreender o que se passou na alma de Tiago naquele momento” (97). Teria Plinio Salgado tido revelação direta do chamado do Senhor? Mistérios que a história averiguará. Em todo o caso, as perseguições que ele sofreu foram as que sofrem os confessores de Cristo, seus sofrimentos foram a Cristo ofertados; pelo que a sua figura humana possuía, acima dos seus talentos e saberes, a graça alada da santidade.
Ninguém havia entendido a Tradição brasileira antes dele, e, depois, convém apenas compará-la com o empreendimento intelectual de José Pedro Galvão de Sousa em nossos dias, se bem que este tenha apurado até às últimas conseqüências os planos das raízes tridentinas, filipinas e hispânicas do Brasil, que, aliás, em Plinio Salgado constam também com patente claridade.
Ignoro o eco que o futuro reservará às teorias construídas por Plinio Salgado, varão justo, santo e sábio igualmente, encarnação viva de seu povo e descobridor bandeirante das essências de sua pátria. Parece-me sim, que, se o Brasil há de ser autenticamente brasileiro, terá de volver seus olhares para esse apóstolo caboclo, baixinho e nervoso no corpo, porém grandíssimo na alma e na fé. Por minha parte, agradecerei sempre a Deus por me haver concedido a graça de conhecê-lo, de tratar com ele e de admirá-lo, exemplo incomparável de saberes e de virtudes. Porque Plinio Salgado foi um desses presentes que a Providência rarissimamente faz a um povo, para que sejam faróis de verdade e bandeiras de esperança.
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NOTAS:
(1) No Diário de Notícias do Rio de Janeiro, de 22 de Março de 1936.
(2) Em A Tarde, Salvador, Bahia, de 7 de Outubro de 1933.
(3) PLÍNIO SALGADO: Discursos, São Paulo, Companhia Editora Panorama, 1947, pág. 82.
(4) Nas Notas editadas pela revista Panorama de S. Paulo, pág. 238
(5) Rio de Janeiro, José Olympio, 1934, pág. 5.
(6) Rio de Janeiro, José Olympio, 1934, pág. 156
(7) Guardo como Tesouro em minha biblioteca as Notas manuscritas que o próprio PLINIO SALGADO me entregou em 1949; porque não conheço nenhuma outra biografia sua tão serena, tão completa, tão humilde e tão autêntica. Possui todos os caracteres de uma confissão sincera.
(8) Em Notas, 70
(9) Em A Manhã do Rio de Janeiro, de 29 de dezembro de 1936.
(10) Em Notas, 273.
(11) Na Gazeta de Notícias de 1.° de dezembro de 1926.
(12) PLINIO SALGADO: O Esperado. Segunda edição. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936, pág. 13.
(13) P. SALGADO: O Esperado, 260.
(14) Speyer a. Rh-, Pilger Druckerei, 1940, pág. 64.
(15) P. SALGADO: Despertemos a Nação. 131.
(16) Lisboa, Pro Domo, 1945, pág. 158. Também nas págs. 167. 168.
(17) Terceira edição. São Paulo, Companhia Editora Panorama, 1948, pág. 24
(18) P. SALGADO: O Esperado, 80.
(19) P. SALGADO: O Cavaleiro de Itararé, 30-31.
(20) P. SALGADO: O Cavaleiro de Itararé, 52.
(21) P. SALGADO: A quarta humanidade, 181,182.
(22) Pode ver-se nas págs. 471-472 do livro de GEORGES RAEDERS: D. Pedro II e o Conde de Gobineau (Correspondência inédita). São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1938.
(23) P. SALGADO: O Cavaleiro de Itararé, 25.
(24) P. SALGADO: Discursos, 84
(25) São Paulo, Presença, 1945, pág. 31.
(26) P. SALGADO: A aliança do sim e do não, 53.
(27) São Paulo, Panorama, 1948, pág. VIII.
(28) P. SALGADO: A aliança do sim e do não, 75
(29) P. SALGADO: O Esperado, 260-268
(30) Rio de Janeiro, José Olympio, 1937, pág. 49.
(31) P. SALGADO: Geografia Sentimental, 63.
(32) Cito pela segunda edição. Rio de Janeiro, A. Coelho Branco, 1947.
(33) Lisboa, Atica, 1946, pág. 101.
(34) Quinta edição. São Paulo, Companhia editora Panorama, 1948, págs. 1
(35) P. SALGADO: A quarta humanidade, 183.
(36) P. SALGADO: O nosso Brasil, 38-39.
(37) P. SALGADO: Como nasceram as cidades no Brasil, 24.
(38) P. SALGADO: Como nasceram as cidades do Brasil, 34.
(39) P. SALGADO: Como nasceram as cidades do Brasil, 146.
(40) P. SALLGADO: Nosso Brasil, 57-65, 71-76, 109-112, 135-140.
(41) Na Revista da Academia Paulista de Letras II (1939), 6-12.
(42) P. SALGADO: O Rei dos reis, 59.
(43) P. SALGADO: A aliança do sim e do não, 87-89.
(44) P.SALGADO: Como nasceram as cidades do Brasil, 116.
(45) P. SALGADO: O Rei dos reis, 131.
(46) P. SALGADO: A Aliança do sim e do não, 49.
(47) P. SALGADO: O Rei dos reis, 50.
(48) P. SALGADO: Rio de Janeiro, Livraria Clássica Brasileira, 1950, pág. 159.
(49) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 24.
(50) P. SALGADO: Discursos, 42.
(51) P. SALGADO: A aliança do bem e do mal, 41.
(52) São Paulo, Editorial Guanumby,1949, pág. 18.
(53) P. SALGADO: A quarta humanidade, 87.
(54) P. SALGADO: Discursos, 10.
(55) P. SALGADO: Discursos, 13.
(56) P. SALGADO: Discursos, 50.
(57) P. SALGADO: Discursos, 76.
(58) P. SALGADO: Discursos, 83.
(59) P. SALGADO: Discursos, 145.
(60) P. SALGADO: Discursos, 77.
(61) Rio de Janeiro, José Olympio, 1936, pág. 18.
(62) P. SALGADO: O Estrangeiro, 33.
(63) P. SALGADO: A quarta humanidade, 120.
(64) P. SALGADO: Despertemos a Nação!, 112.
(65) P. SALGADO: Despertemos a Nação!, 169.
(66) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 134.
(67) P. SALGADO: O Cavaleiro de Itararé, 247.
(68) P. SALGADO: Despertemos a Nação!, 153.
(69) P. SALGADO: Prólogo a VILLEFRANCHE: Pio IX, pág. XX.
(70) Coimbra, Edições Estudos, 1945, pág. 97.
(71) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 37.
(72) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 155.
(73) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 56.
(74) P. SALGADO: A quarta humanidade, 98-103.
(75) Lisboa, Editorial Ática, 1943, págs. 88-89.
(76) P. SALGADO: A mulher no século XX, 77.
(77) P. SALGADO: Vida de Jesus, 261. — A aliança do sim e do não, 50-51.
(78) P. SALGADO: O Estrangeiro, 118.
(79) P. SALGADO: A quarta humanidade, 83.
(80) P. SALGADO: Palavra nova dos tempos novos, 126-127.
(81) P. SALGADO: Despertemos a Nação!, 150-151.
(82) P. SALGADO: O Rei dos reis, 65-66.
(83) P. SALGADO: Despertemos a Nação!, 142.
(84) P. SALGADO: A aliança do sim e do não, 48-49.
(85) P. SALGADO: Despertemos a Nação!, 120-122,126.
(86) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 33.
(87) P.SALGADO: A quarta humanidade, 87.
(88) A, N, DE FLUE GUT: Plinio Salgado, 84-85 e 93.
(89) P. SALGADO: A quarta humanidade, 115.
(90) P. SALGADO: Discursos, 167.
(91) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 58.
(92) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 84 e 110.
(93) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 121 e 123.
(94) P. SALGADO: Direitos e deveres do homem, 126.
(95) P. SALGADO: O Rei dos reis, 28.
(96) P. SALGADO: Em Contrastes e Confrontos, oitava edição, Porto Lello e Irmãos, 1941, págs. 11-19. Citação à pág. 12.
(97) P. SALGADO: Vida de Jesus, 113.
* FRANCISCO ELÌAS DE TEJADA Y SPINOLA — Nasceu na Estremadura (Espanha). Filósofo do Direito e do Estado e historiador das idéias políticas. Foi professor de Filosofia do Direito nas Universidades de Murcia, Salamanca, Sevilha e Madrid. Pioneiro do Jusnaturalismo tomista e fundador da Associação dos Jusnaturalistas Hispânicos e organizador das Primeiras Jornadas Hispânicas de Direito Natural, realizada em Madrid em 1972, às quais se seguiram outras semelhantes em Genova, Bari, Atenas, Santiago do Chile e em São Paulo. Era profundo conhecedor dos homens e das coisas do Brasil. Foi um dos fundadores e diretor da secção espanhola da revista de cultura Reconquista, publicada em São Paulo de 1950 a 1955, tendo sido, mais recentemente, colaborador da revista Hora Presente, fundada e dirigida em São Paulo pelo Dr. Adib Casseb.
Obras principais: Introducción al estudio de la Ontologia Jurídica, 1942; La causa diferenciadora de las comunidades políticas, 1943; Las doctrinas políticas en Portugal, 1944; La tradición gallega, 1944; Historia de la Filosofia del Derecho y del Estado, 1946; Las doctrinas políticas de Farias Brito, 1953; Tratado de Filosofia del Derecho, (obra monumental, incompleta em face do seu falecimento) Tomo I, 1974.