As nações têm uma personalidade? Se têm, de que elementos ela se constitui? E de que modo se manifesta?
Eis as perguntas que se nos oferecem, como preliminares de todas cogitações acerca dos objetivos políticos internos e externos e da linha de orientação de pensadores e de homens públicos, tendo-se em vista que a política não pode ser simplesmente uma série de atos relacionados com os interesses pessoais e de grupos.
Respondemos, inicialmente, que as nações possuem uma personalidade. O conceito de soberania e os princípios em que assenta o direito internacional se fundamentam na existência real de entidades coletivas tipicamente diferenciadas.
Essa personalidade nacional é constituída de elementos essencialmente espirituais, ainda que se manifeste nas expressões materiais visíveis da sociedade civil, e dos tipos de vida condicionados a circunstâncias físicas específicas.
A extensão territorial do país, o índice da população, o potencial econômico, pode ser desigual, mas a personalidade nacional de um pequeno povo em pequeno território tem o mesmo valor da personalidade nacional de um povo numeroso em vasta área territorial. O que importa é a diferenciação historicamente processada e nitidamente manifesta. A Bélgica e a Rússia, o Haiti e os Estados Unidos, Nicarágua e o Brasil, representam, cada qual, um valor distinto, devendo usufruir de idênticos direitos no convívio internacional.
A manifestação dessa entidade coletiva traduz o que poderemos chamar o gênio de um povo. E o gênio de um povo exprime um caráter próprio, um modo de ser, uma tendência vocacional, uma consciência de missão histórica, uma aspiração a ideias que justificam a permanência e a sobrevivência da Nação.
As Nações nascem quando aquele caráter se define, aquele modo de ser se fixa, aquela tendência vocacional se revela, aquela consciência se determina e aquela aspiração se torna o móvel das ações políticas dos indivíduos e dos Estados. E as nações definham e morrem, à proporção que vão perdendo o sentido da sua própria existência e encontram diante de si o vazio imenso de ideais a serem procurados.
Isto posto, significa, sem sombra de dúvidas, que as nações onde tudo se reduziu a interesses de ordem material e onde cada pessoa da sociedade nacional somente se preocupa com os seus interesses egoísticos, são nações fadadas a desaparecer como personalidade histórica e perdendo todo o motivo de sua continuação, perdem todo o direito de sobreviver.
Mas é preciso ter-se em conta que um povo, constituído em nação, está sujeito a esse desgaste, a essa desintegração, se não for constantemente estimulado de sorte a manter viva a consciência de grupo, o sentido histórico de uma determinação coletiva. O estímulo há de ser dado pelos homens que representam os valores-índices mais conscientes da comunidade nacional. Se esses valores faltarem, pode-se ter como certa a desagregação e a ruína da Nação.
A consciência de grupo tem seu ponto de partida na memória. Esquecer é morrer. A vida — não a vida vegetativa e rudimentar, mas a vida que sabe que vive, é a presença de toda uma série de atos de acontecimentos pretéritos e atuais, compondo a noção do ser no próprio ser.
Significa isto que a ausência da memória tem como resultado um ser, que sendo, é como se não fosse. Essa inconsciência paralisa todos os movimentos de defesa ou de afirmação. Vegetaliza o ser, primeiro pela abolição da vontade, depois pela eliminação do próprio instinto de conservação. O ser deixa de ser sujeito para ser objeto. Deixa de ser agente para ser paciente.
As nações sem memória se deixam conduzir pelos acontecimentos. Rege-as o determinismo brutal dos fatos. Decide seus destinos a vontade estranha de outros grupos nacionais conscientes. A Nação vegetalizada no pragmatismo dos interesses cotidianos, brutalizada pelos interesses mesquinhos do dia a dia, absorvida pelas exclusivas preocupações materiais do comércio e da politicagem dos facciosismos estreitos, já não conhece a maravilhosa e exaltadora conjugação dos verbos em voz ativa, já não sabe clamar com força esta palavra “eu”.
Ensinar a Nação a saber quem é, para que ela continue a ser é a missão dos seus condutores. Foi a missão de Moisés através do deserto. Foi a missão de Péricles na Grécia. Foi a missão de Isabel de Castela, de Afonso Henriques quando fundou a Monarquia Lusitana, de Richelieu unificando a França, de Pedro, o Grande construindo a Rússia, de Frederico, criando a Alemanha, de Washington, anunciando ao mundo uma nova nação, de José Bonifácio, fundando o Império Brasileiro.
Precisamos de homens conscientes para construirmos o Brasil consciente. Precisamos dar sentido à vida brasileira. Sentido histórico derivando das fontes da História. Sentido espiritual, superando as misérias da hora presente, a confusão pronunciadora da desintegração nacional, e elevando o nível das preocupações do nosso grupo humano.
Plínio Salgado
Jornal A Marcha, 10 de julho de 1953.