Uma afirmativa que vai escorregando para os livros didáticos é que o indígena do Brasil não conhecia a propriedade privada. Sente-se que uma tese prestabelecida orienta os estudos etnográficos. Serão eles cimentos posteriormente “reais” de próximas bases sociológicas. Ninguém mais terá tempo nem vontade de rever a velha documentação colonial e mesmo etnológica, vinda de alemães, indicando o contrário. Ficará uma consequência real, partida de premissas falsas. “O interesse é na História um mau conselheiro”, dizia o general Couto de Magalhães.

O índio brasileiro vivia de caça e pesca. Guerreiro por excelência, só recorria aos rios e mar e ao encontro de animais e aves, quando os inimigos escasseavam e os saques, tornados problemáticos ou difíceis, afastavam a possibilidade dos ataques contínuos. Para caçar e pescar tinham eles seus instrumentos variados e múltiplos. Arapucas, mundéis, jiquis, aratacas, armadilhas submersas, flechas bifarpadas, para quebrar depois de ferir, zarabatanas, curabis, mil objetos de arremesso e espera. Tudo era dele, exclusivamente dele, próprio, sagrado, inviolável. São “instrumentos de trabalho” inalienáveis pela apropriação alheia, ensinam. Em sua casa, óca individual ou nas habitações coletivas, o ameraba possuía esteiras, cumbucas, igaçabas, redes de pesca, paneiros, camucins, vinte coisas que eram sua mobília, seu conforto, a instalação do “home” selvagem. Também tudo era dele, próprio, sagrado, inviolável. Todos estão de acordo. Pergunto: — esses instrumentos de trabalhos e esses objetos domésticos não eram “tudo” quanto representava a propriedade para o indígena? Sua mobília, seu armário, seu buffet, sua cristaleira, seu almoxarifado? Tanto era aquilo para o indígena quanto é para nós o acervo complicado da nossa “impedimenta” familiar.

Não há, em nenhuma fonte, nota em contrário. O índio possuía, em pleno uso e gozo jurídico, seus objetos de guerra, caça, pesca e residência, podendo dar, vender, permutar ou destruir.

Mas não é esse ponto que se discute. “O índio não conhecia propriedade privada imóvel. A terra era bem comunal. Tudo quanto se plantava e colhia, mesmo caça e pesca, distribuía-se entre todos. Há, indiscutivelmente, um comunismo primitivo. Tudo era de todos”. Essa lição vem atravessando livros, conferências e “comunicados”. Quais sejam as finalidades sociais dessas conclusões eruditas e desinteressadas, ignoro.

O índio não tinha a posse individual da terra? A terra era da tribo?

Qual seria, pois, o critério de “propriedade” adotado pela tribo? Devia, obrigatoriamente, haver trabalho coletivo num campo coletivo. Desta forma a produção pertencia a todos, recolhida num local privativo. Far-se-ia a distribuição equitativa ou proporcional ao esforço de cada um? Não se sabe. Sabe-se é que não há notícia de um armazém, de um celeiro, de um depósito de mantimentos nos acampamentos indígenas. Sabe-se, por trinta viajantes e exploradores, que cada cabana guardava seus víveres, milhos, inhames, mandioca, corós, batatas, raízes farináceas, carnes moqueadas. Cada cabana, cada família tinha sua dispensa. É fácil verificar em qualquer narração de viagem ou perguntar a quem haja visitado um acampamento ameraba. Dirão que poderá ser uma forma atual. Procurem um exemplo nos velhos livros ou nas impressões de Karl von den Steinen, Ehrenreich, Koch-Grünberg, Max Schmidt, Fritz Krause, em Martius, em Wied-Neuwied… Fico esperando o desmentido…

Bem singular que haja trabalho coletivo, produção coletiva e um depósito doméstico. A distribuição dar-se-ia nas safras, na ocasião das colheitas? É óbvio que não. A coletividade tem outras exigências. Desde que a produção pertence a todos, recolhe-se nos silos, nos armazéns, para enfrentar a fome, regulando o arritmismo climatérico ou prevendo as futuras guerras e secas. Assim foi no Egito, na Assíria, na Média. E lá havia propriedade privada.

Entre os índios do Brasil houve terra trabalhada por todos e terra de trabalho individual. Para a primeira orientava-a o tuixáua, o chefe, alimentando os trabalhadores, dando-lhes bebidas e arranjando bailes noturnos. Justamente como nas “esfolhadas” de Portugal. Esse hábito indigena era o puxirum ou muxirum, poxirão, potirão, chamado no nordeste brasileiro, “ajuda”. O proprietário “convidava” homens para ajudá-lo. Pagava-lhes em festas, comidas alegradas pelos “foles”, as “gaitas” no Rio Grande do Sul, acordeão, sanfonas, harmônios. Era um dever sertanejo acudir aos pedidos de ajuda. Outras ajudas eram devidas nos incêndios do pasto ou quando as enchentes ameaçavam os paredões dos açudes. Hábito sagrado da solidaderiedade que a civilização materialista matou e perverteu. O puxirão e a ajuda, são a mesma entidade, no sul e no norte do Brasil. Esse era, logicamente, o trabalho coletivo, e nele fala o Padre Ivo d’Evreux na Viagem ao Norte do Brasil (1613-1614) nas terras do Maranhão tupinambá:

“Os Principais, que ordinariamente têm mesa franca para o que necessitam de roças maiores, preparam um cauim geral, e como todos partilham dele, se incumbem de cuidar nas plantações, o que fazem com alegria numa ou duas manhãs, e depois vão beber na casa daquele para quem trabalharam…”

O fato incontestado do indígena ter em sua casa o poder dispor de víveres, denuncia a unilateralidade do “comunismo dos índios brasileiros”. Mas não é somente esse o elemento adverso. Certos índios não tinham farinha, carnes moqueadas ou piracuí (farinha de peixe) e vão pedir aos que têm. O gesto generoso do índio, cedendo parte de seus víveres, prova uma obrigatoriedade na dádiva?

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Pensemos que o índio, caçador, pescador e guerreiro, trabalhava pouco nas roçarias, dando-as à dedicação da mulher, das filhas e dos escravos. Elas podiam trabalhar “para outrem”, mas recolhiam e “possuíam” toda sua produção, conduzindo-a para a casa, dispondo dela tão amplamente como das flechas, tacapes, canitares e enduapes.

Dirão que, de acordo com as histórias, o índio distribuía toda a caça abatida. Por menor que fosse o pedaço, esfarelava-o para que todos tivessem um fiapo. É verdade. Abbeville, Evreux, Lery, Thevet, os sábios catequistas da Companhia de Jesus, dão testemunho. Essa divisão explica-se pela solidariedade tribal, pelo liame afetuoso, espontâneo e pessoal do doador. Não havia força coercitiva para determinar a oferta. O que cada índio individualmente caçava lhe pertencia, integral e absolutamente. Se assim não fosse, pergunta Max Schmidt, a caça abatida por um índio não podia ser dada de presente como dote da noiva. O índio, durante tempos, caçava e pescava, presenteando seu futuro sogro. E sempre dispõe de peças para permutar por objetos que lhe interessam. Como justificar essa estranha “obrigação distributiva” ante o livre arbítrio de dispor da coisa no sentido de sua vontade?

“O índio não tinha, além de seus instrumentos de trabalho e utensílios domésticos, nenhuma noção de propriedade”. Como explicar a posse completa do escravo, de outro homem, obtido em guerra? O escravo podia ser devorado ou servir ao seu senhor na caça e pesca. Não era propriedade da tribo. Hans Staden foi “propriedade” individual de um tupinambá e contou-nos sua historia num livrinho conhecido. D’Evreux dá dois capítulos de seu livro, XV e XVI (edição de 1929, Rio de Janeiro), sobre as leis referentes aos escravos. Só podiam ser propriedade da tribo, e devorados logo depois, quando fugiam da posse de seu senhor.

Uma das maiores injúrias que se podia fazer a um indígena era chamá-lo mundiá (ladrão, mundápora, para Stradelli). Nas comunidades primitivas (se as houve) o furto seria vocabulariamente inexistente por não constituir crime mas apenas transferência de posse útil.

Sabemos, por todos viajantes e etnógrafos, que o índio é sepultado com todos os seus objetos de uso e de guerra. Posse dos objetos, dirão. Consequência da propriedade privada, respondo.

Quando o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied visitou os botocudos no sertão baiano, em 1817, assistiu um duelo a pau, entre dois chefes indigenas, Jeparack e Kerengnatnuck (Reise nach Brasilien, 1ª, pág. 370), muito reproduzido na imprensa e livros, embora sem citação de procedência. O episódio é expressivo. Kerengnatnuck fora caçar pecaris nas reservas de Jeparack. Este, ofendido, não sei em que, se não tivesse noção de propriedade privada sobre os pecaris e seu terreno de caça, desafiou, não o violador de “sua” propriedade, mas o chefe da tribo, Gepakeiu, então ausente. Kerengnatnuck aceitou, em nome de seu soberano, a luta, e mediaram-se a pau.

Difícil explicar esse “comunismo primitivo”, tocante aos pecaris…

Lembremos que o índio não era verdadeiramente agricultor. Deixava essa tarefa aos de sua família. Não estava fixado definitivamente. Era nômade? Parece que não. Circulava dentro de uma região, sempre a mesma, mudando os pousos segundo as necessidades de alimentação. Esgotada a caça e rareada a pesca, mudava o acampamento, destruindo as palhoças e levando os melhores utensílios. Ficava nas margens do mar ou dos rios quando os cardumes apareciam nas épocas de desova. Certas frutas faziam a tribo demorar nas colheitas. Assim os cajus, oitis, jenipapos. A estada num local dependia das condições da caça e da pesca. As mulheres, ajudadas, plantavam abóboras, melancias, macaxeiras e inhames, corós, mandioca para a farinha, base da alimentação, tratada em vários tipos, e guardada em paneiros de junco ou cipó. A aclimatação do homem na agricultura foi lenta e na proporção que a guerra se tornava custosa e o “branco” mais poderoso.

Sendo a agricultura a fixadora do homem, a força pivotante, não é possível termos o índio com a noção ampla e atual de propriedade, uma vez que ele não era agricultor. Era um aproveitador transitório dos frutos e raízes, e não um cultivador obstinado e permanente do solo. Naturalmente decorriam as noções milenárias da propriedade da intuição, comum a todas as idades do homem, de que não havia um direito à propriedade da terra independente do trabalho direto. La propiedad, ensina Andrés Giménes Soler, nace con el cultivo. O cultivo iniciava-se para o indígena. Mas a ideia de propriedade privada já era, não apenas esboçada e vaga, mas positiva e delineada em traços enérgicos e claros.

Luís da Câmara Cascudo
Publicado originalmente em Revista Panorama nº 9, de 1936. Foi reeditado em Informações de História e Etnografia, de 1944.