Variado na sua própria tradição, o Município brasileiro representou, porém, um importante papel nos velhos tempos da vida nacional. Nascendo e florescendo no Brasil, quando o absolutismo em Portugal já restringira a dignidade das franquias locais, a instituição não pôde repetir aqui o respeitado Município lusitano, que trouxe das origens romana [1] e visigótica [2], e da aliança do monarca contra os senhores feudais, a sua força e sua prestigiosa auréola de autonomia.
O Município colonial não tem feição uniforme e típica, não obstante a uniformidade da legislação matriz: as ordenações manuelinas e, as novas, que Dom Filipe baixou em 1603. Daí não chegaram os historiadores, querendo generalizar, uma conclusão. Uns, num lírico saudosismo, desejam para os Municípios de hoje a autonomia e a liberdade dos de outrora. E relatam os levantes locais, as consultas aos procuradores das vilas, e até as petulâncias das câmaras contra os capitães, e os poderosos jesuítas. Houve disto no Estado do Maranhão, não obstante a relativa certeza do Sr. Hélio Vianna [3] distinguindo que “foi a autonomia municipal mais notável no Sul que no Norte”. Enquanto essa é uma face da história, Capistrano investe contra o mito da autonomia no municipalismo colonial. Diz que as câmaras foram o paraíso das oligarquias. O isolamento nas distâncias desérticas, o perigo indígena e o dos assaltos estrangeiros. As armas que os arsenais forneciam barato e os habitantes eram obrigados a possuir. [4] Daí a hierarquia de valores num sentido principalmente econômico e militar. E os caciques brancos surgiram e dominaram as câmaras — uma decorrente do caudilhismo nascido como uma necessidade de disciplina no meio heterogêneo e anárquico, ou do choque entre o individualismo desbravador e o agregarismo urbano, segundo Alberdi.
Não importa, no momento, esclarecer o assunto. Fique concluído que as vilas e cidades brasileiras, sob a democracia que poderíamos dizer aristocratizada dos homens bons, ou sob o guante dos truculentos e façanhudos coronéis, atingiu uma grande importância na época colonial, tendo mais renda relativamente do que hoje e muito maior prestígio em face dos poderes mais altos.
Diante da história, é um impositivo democrático anular as razões políticas que escravizaram os Municípios progressivamente, sobretudo a partir do liberalíssimo e descentralizador “Ato Adicional”, de consequências tão paradoxais…
Sobrevivências Corporativas
O espírito medieval entrou com a legislação e os costumes portugueses transplantados. Daí a influência que exerceram os grêmios de ofícios e as sociedades de “artistas” no velho município brasileiro, até que, como impunha o figurino da Revolução Francesa (Lei Chapelier), a Constituição de 1824 proibia as corporações profissionais. Em alguns casos, chegou a haver a localização urbana das classes: “rua dos latoeiros”, “baixa dos sapateiros”, etc.
Ainda hoje, no interior, o artesanato se organiza segundo os graus medievais: “mestre”, “oficial” e “aprendiz”. Graus na escala educativa e na disciplina social. Os “artistas” (artífices) tendo prestígio nas localidades, tal como não se dá com as massas operárias, mesmo os operários qualificados. É ver de visu nas cidadezinhas do interior esse resíduo democrático do corporativismo medieval.
Os cronistas se referem ao relevo que assumiram na vida local, diante da administração, as corporações de ofícios. E as corporações de benefício e de música.
A macaqueação dos nossos liberais pressurosos de apagar a vergonha de associações proibidas na Europa, veio ainda mais agravar a dispersão brasileira, consequência da indisciplina nômade e expansiva de um povo arrivista num território imenso.
Poder-se-ia objetar que o sindicalismo vem contra a índole do nosso povo. Direi que vem contra um mau costume. Pois o “mutirão”, as vaquejadas, são documentos ingênuos de uma tendência associativa, que nos cumpre cultivar. Formar, se esse for o caso.
Organização Municipal e Autonomia
A organização municipal é uma das tarefas mais decisivas na revolução nacional. Depois do grupo biológico da família, e do grupo econômico de profissão, vem o município como o grupo geográfico básico, que precisa ser respeitado nos seus direitos à autonomia, ao desenvolvimento livre, à personalidade.
Hoje o município está espezinhado pelo regime, apesar das solenes promessas constitucionais de autonomia. A divisão das rendas não permite aos municípios realizar seus objetivos naturais. E a “política” lança a intranquilidade, a luta interna, acirra os caprichos e as ambições agressivas dos grupos, sujeita, enfim, os municípios às oligarquias estaduais.
A conquista de autonomia só é possível à base da destruição dos partidos e grupos, que disputam ou monopolizam o mando, em prejuízo das povoações. Portanto, da substituição do regime liberal, cujo sistema representativo é inexpressivo no seu caráter indiferenciado e quantitativo. E o governo municipal, para garantir e efetivar o sistema representativo democrático e para assegurar as vantagens de uma representação popular mais responsável e mais capaz de dirigir os negócios comunais, é o que estabelece o Manifesto-Programa:
“Os municípios serão organizados sobre bases sindicais, cabendo a escolha do Prefeito (Executivo Municipal) aos Conselhos Municipais formados pelos representantes das profissões organizadas. Esse prefeito terá assistência técnica do Departamento Central Municipal de cada Província, criando-se um corpo de técnicos de carreira”.
Limites da Autonomia Municipal
A autonomia municipal é no que concerne aos negócios, interesses e aspirações locais. É o direito à personalidade do grupo social-geográfico básico. A fisionomia social da Nação não pode ser quadriculada e standard, porque com a variedade é que se enriquece e integra a unidade.
Mas a autonomia municipal, garantida através do prestígio dos poderes locais, e de uma maior soma de recursos ao dispor do município, sofre duas restrições: — quanto às atividades que interessam não só o Município, apesar de se realizarem nele; — e quanto à técnica da administração.
Aquela é uma restrição lógica, até porque, apesar dos direitos subjetivos do Município, a soberania não é dele, mas da Nação, que lhe assegura assim os direitos na medida em que não colidem com os supremos objetivos nacionais.
A outra não chega a ser uma restrição. É uma assistência. Não pode haver autonomia, portanto governo próprio, onde não há condições elementares para a administração realizar dignamente os seus objetivos. Os Municípios, neste caso, ficam sob tutela superior. Da mesma forma que os menores.
O governo tem ainda o direito e o dever de interferir nos Municípios, não para oprimi-los, ou despersonaliza-los, mas para ajudar que eles se realizem melhor. Seria inconcebível que, pelo respeito à autonomia municipal, o governo permitisse aos eventuais administradores locais as orientações e as práticas retrógradas, extravagantes e condenáveis.
Os atuais “departamentos das municipalidades” já realizaram muita coisa de proveitosa e relevante. Mas, com a sua burocracia, a sua organização empírica e de emergência, e inspirados no interesse da política estadual, têm, em muitos casos, cerceado ainda mais a autonomia das administrações municipais. Eis o que é preciso evitar, pois o papel dos departamentos deve ser marcadamente de cooperação e estímulo, de esclarecimento. Função que exige técnicos que ainda não temos, para servirem, no ramo da sua especialidade, aos Municípios, que precisam de quem os oriente, e não podem gastar com onerosos contratos.
Realização do Sistema Integralista
Primeiro ponto: sindicalização. Para a sindicalização: educação sindical e associativa.
Segundo ponto a encarar: a diversificação social e econômica dos Municípios fazendo variar, não somente no sentido vertical do número, mas no sentido horizontal da estrutura, o esquema dos representantes à Câmara Municipal.
Essa variedade é essencial, me parece, e reflete o sábio realismo do sistema corporativo integralista, que, neste caso, como nas convenções de trabalho, atende muito mais liberdade e a descentralização exigidas pela variação das circunstâncias e das personalidades. Apesar de ser o sistema criminado de centralista, totalitário, absorvente, tirânico…
O sistema corporativo estabelece uma organização sob medida. É de encarecer-se esta organicidade, condição da melhor autonomia, do respeito às peculiaridades locais. Do que resultam câmaras ou conselhos municipais que correspondem à estrutura econômico-social do Município. Administrações apropriadas, capazes.
Assim, por exemplo, num Município exclusivamente industrial, os representantes patronais e operários se diferenciam pelos vários ramos da indústria, e eles serão quase que exclusivamente também os representantes econômicos no conselho (a exclusividade industrial é um exemplo, teórico, pois sempre haverá uma pequena atividade comercial e agrária). Igualmente sucederá com os municípios agrícolas. A organização toma em todos os casos o cunho local, no que está uma condição efetiva de autonomia e de eficiência do governo municipal.
Também no Conselho se representarão os trabalhadores intelectuais e as associações de caráter moral e cultural.
Para se compreender melhor o alcance desta medida, lembre-se a situação presente: as câmaras não raro povoadas de espertos cabos eleitorais ou dóceis amigos dos chefões, pessoas inexpressivas, às vezes também cidadãos valorosos, é certo, que entretanto estão sujeitos às injunções políticas. A experiência nos mostra que o problema não é só de competência pessoal dos representantes (mesmo compreendida sem simplismo a “competência”), pois as competências têm pouco valor diante dos entraves “políticos” que as cerceiam.
A representação das atividades de caráter moral e cultural vem completar a representação econômica do povo, isto é, das classes que se diferenciam pelo trabalho. Traz as tendências nobres e superiores da sociedade como uma sadia inspiração do governo municipal.
Esquema da representação em um município médio
Num município médio (município comum, cuja sede tenha de 1 a 13 mil habitantes, mais 3 ou 4 distritos, indústria rudimentar, comércio local e de exportação de produtos agrícolas, lavoura predominante) poderíamos antever ou imaginar assim:
Estão aí 15 representantes. Esquema que não pode ser rígido, repito. E no qual se veem incorporadas ao governo local certas atividades sociais e educativas relevantes que atualmente são relegadas ou obtêm pequenos “favores”, à custa frequentemente do servilismo à politicagem.
Não diferenciei em patrões e empregados a representações dos artífices (“artistas”, como se diz), pois os “mestres” não são propriamente patrões e há uma solidariedade familiar entre os três degraus. É um ponto a estudar.
A maior dificuldade na representação é a dos empregadores e empregados da lavoura. Dificuldade técnica de sindicalização. Pelo número de classes intermediárias. Pelo diminuto gregarismo das classes rurais. Pela solidarização de interesses e unidade de espírito, comum entre os patrões e empregados rurais. Outro ponto a estudar.
Lembremos para encaminhar os estudiosos, a solução portuguesa: sindicatos mistos de patrões e empregados rurais, núcleos de assistência social e educação, centros irradiadores de vida nova, que o regime de Salazar abriu em todos os recantos de Portugal para remediar a dispersão agrária. Esta “Casa do Povo” tem representantes nas câmaras municipais portuguesas. [5] E, falando da organização municipal no “Estado Novo”, lembremos ainda que, além dos representantes profissionais e culturais, os conselhos municipais portugueses de hoje reúnem também um representante por freguesia (distrito nosso) dos chefes de família do Município. [6]
Rômulo Almeida
“A Offensiva”, 31 de outubro de 1937.
Notas:
[1] Alexandre Herculano — História de Portugal.
[2] Hinojosa — Origen del Régimen Municipal.
[3] Hélio Vianna — Formação Brasileira.
[4] Pedro Calmon — História da Civilização Brasileira — Espírito de Soc. Colonial.
[5] Decreto nº 23.053, de 23 de setembro de 1933 (CP).
[6] Na organização portuguesa, a Câmara Municipal é o órgão administrativo do Conselho, tal como a nossa antiga vereança, e é assistida ainda pelos órgãos consultivos, a saber: comissões de higiene, arte e tecnologia, venatória, turismo e os sindicatos e grêmios. O presidente da Câmara, como o “Podestà” italiano, é de nomeação do governador, e corresponde ao nosso prefeito (Código Administrativo, Decreto-Lei nº 27.424, de 31 de dezembro de 1936).