O discurso abaixo foi proferido pelo Deputado integralista Sebastião Navarro Vieira, na Câmara dos Deputados, em 30 de junho de 1976. Seu contexto foi a controvertida política econômica desenvolvimentista de Ernesto Geisel, autor do II PND. Defendendo o nacional-desenvolvimentismo do Governo, o deputado Navarro Vieira estuda o problema da intervenção do Estado na economia, das privatizações, das estatais e das relações entre a economia privada e o Poder Público.
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Sr. Presidente, Srs. Deputados, queremos hoje desenvolver algumas considerações sobre o grande debate que se desenvolve em todo o País, envolvendo aspectos de estatização, de privatização ou de desnacionalização da economia nacional.
Antes de mais nada, convém dizer que o grande problema do exato enfoque dessa controvertida questão reside na extrema dificuldade do estabelecimento e especificações dos campos de ação da economia pública e da economia privada.
Com efeito, subordinando-se a própria concepção de Estado à dinâmica dos fatos socioeconômicos, que estão em permanente mutação, a perfeita e harmoniosa compatibilização entre o que é público e o que é privado vem a se constituir em problema que exige contínuos estudos, análises e interpretações.
A partir do momento em que o Ministro-Chefe da Secretaria de Planejamento da Presidência da República, Sr. Reis Velloso, solicitou dos empresários sugestões a respeito de possíveis caminhos quanto à desestatização da economia brasileira, passou a adquirir uma nova dimensão a antiga controvérsia sobre estatização-privatização.
Dali pra cá, o tema passou a ser o cerne de um grande debate nacional, com manifestações frequentes traduzindo posições radicalmente contrárias, quer na área política, quer na área econômica. Com efeito, o plenário do Congresso Nacional e de todas as Casas Legislativas do País, os editoriais e comentários de grandes veículos de comunicação de massa, as análises dos economistas as manifestações de órgãos de classe, todos aí estão, diariamente, a nos trazer opiniões conflitantes e novos ângulos de enfoque da questão.
Tratando-se de problema que envolve opção política quanto a caminhos econômicos, nada mais razoável que debatê-la neste plenário, pois que a este Poder cabe, especificamente, o papel de fórum de debates das grandes questões nacionais.
Antes de mais nada, convém declarar que, apesar dos pesares e de tudo o que possa estar por trás da polêmica estatização-desestatização, entendemos ser o debate oportuno, no sentido de que propicia a este País — nem sempre atento às vantagens do debate — um reencontro com a discussão de temas que dizem respeito aos mais altos interesses da Nação.
Isto dito, acreditamos que a questão vem sendo ma colocada e mal dirigida, principalmente pelos que tão apressadamente se põem a defender a retomada de rumos privatizantes da economia brasileira.
Efetivamente, o debate vem sendo travado entre os que batem pela estatização, acusada de ser cada vez mais crescente, e os que se pretendem defensores da iniciativa privada. Mas não se tem feito, com a careza que o deve ser, uma distinção básica entre iniciativa privada nacional e iniciativa privada estrangeira.
Para bem se posicionar a questão, é preciso uma ligeira menção retrospectiva de história econômica do Brasil. Essa retrospectiva poderá mostrar-nos, a um só tempo, tendências históricas do capitalismo industrial brasileiro, bem como os porquês dessa atual campanha contra a participação do Estado na economia nacional.
Gênese do capitalismo industrial brasileiro
Sabe-se que o Brasil, através de sucessivos ciclos econômicos, sempre procurou tirar de atividades primárias um excedente exportável. O mercado interno, existente no correr dessas fases, era resultado direto de atividades de exportação de produtos primários.
A revolução industrial na Europa e a consequente divisão internacional do trabalho fizeram aumentar a demanda de produtos agropecuários.
Surgem, a essa época, os primeiros passos brasileiros no sentido da industrialização. Mas era uma industrialização sem efeitos industrializantes em cadeia, porque só visava a complementar atividades de exportação de produtos primários ou atividades de importação de produtos semiacabados. Em um ou outro dos casos não se tratava de um processo autônomo de industrialização, posto que o interesse de nossos primeiros industriais continuavam ligados ao comércio exterior. Daí que a gênese de nosso processo de industrialização já fazia pressupor que, a não ser excepcionalmente, a indústria nascente não deveria abrir a concorrência com os produtos importados, dado o caráter apenas complementar da indústria nascente.
Dentro desse enfoque, sabe-se que não surgiu no Brasil uma burguesia industrial autônoma, com interesses voltados para a industrialização do País. Compreende-se, assim, que, quando entra em decadência a economia agrotradicional de exportação — consequência da crise mundial de 1920 — “a classe industrial não se manifesta como força capaz de oferecer ao País uma opção clara sobre os caminhos a seguir”.
Com a desorganização do comércio internacional, depois de 1930, assistimos à fase de industrialização, via substituição de importações. Foi, a bem-dizer, nosso único período de industrialização autônoma. Não porque o Estado assim o quisesse, como afirmação de sua vontade, mas porque as dificuldades do comércio exterior impediam a continuação das correntes de exportação de produtos agropecuários e de importação de bens acabados ou não. A crise do comércio internacional, portanto, nos foi benéfica no sentido de que nos fez voltar para o mercado interno, obrigando as indústrias complementares de importações ao encontro da produção de bens substitutos dos produtos anteriormente importados.
Assim, foi a aceleração do processo de substituição de importações que marcou, no Brasil, a passagem de uma economia agroexportadora para uma economia industrial.
A rigor, não se pode, em consequência, falar numa revolução industrializante no Brasil, sob o comando da burguesia industrial, tal como ocorreu no processo de industrialização da Europa.
Mas, mesmo na ausência de uma política sistemática de industrialização, por parte do Estado Brasileiro, o País se industrializou depois de 1930, buscando a produção de bens de consumo não duráveis, e, nesse processo, o Estado acabou por oferecer notável contribuição à iniciativa privada.
A partir dos anos 50, presenciamos o início da produção de bens de consumo duráveis e de bens de base, sendo agentes privilegiados dessa nova fase, para os primeiros, as filiais de empresas multinacionais e, para os segundos, o Estado.
Constata-se, nesta nova fase de substituição dinâmica de importações, a ausência, mais uma vez, da ação de uma burguesia industrial voltada para o País, posto que o período em apreço representou, sobretudo, a hora e a vez das empresas estrangeiras. Não criaram, pois, os nossos industriais, sempre ligados aos interesses externos, uma indústria verdadeiramente nacional, salvo raríssimas exceções. Sempre preferiram, porque não podiam ou porque não queriam, ligar-se a empresas estrangeiras na ocupação dos espaços vazios, quando não deixavam o caminho totalmente aberto à iniciativa privada não nacional.
Diante dessa falta de iniciativa, de interesse ou de capacitação técnico-financeira, o Estado teve de agir, passando a atuar diretamente sobre vários setores. Não tanto porque assim o quisesse, repetimos, mas para operar como agente fornecedor de bens e de serviços a preços baixos às demais atividades produtivas, subsidiando, desta forma, a própria iniciativa privada.
Dentro desse quadro retrospectivo, alguns fatos devem ser destacados:
- Não existiu no Brasil, desde o início de sua primeira fase de industrialização, uma classe industrial verdadeiramente voltada para objetivos nacionalistas. “Grosso modo”, essa realidade ainda persiste, o que explica a tendência de certa classe empresarial à ligação e à dependência a grupos econômicos internacionais e bem reflete os protestos atuais contra a presença do Estado Brasileiro na ordem econômica da Nação.
- A industrialização brasileira não foi o resultado de uma revolução industrial burguesa e nem o fruto de uma manifestação coerente da vontade do Estado.
- O Estado passou a ocupar determinados setores na produção de bens de base — sem qualquer motivação de ordem ideológica — com fins pragmáticos de suprir e subsidiar a produção privada.
O poder de intervenção na ordem econômica
Protesta-se hoje, através de tendenciosa campanha de âmbito nacional, contra a “estatização crescente” de economia brasileira. Deixando de analisar o outro lado da questão — ou seja, a desnacionalização da economia nacional — os que alimentam as teses em prol da privatização combatem, única e exclusivamente, a participação “dominante e avassaladora” do Estado em setores vários da economia do País.
Torna-se válido, em vista disso, perguntar com que direito o Estado intervém diretamente na ordem econômica.
Existe na economia brasileira, como na de qualquer nação capitalista, um setor público e outro privado. É bom que se diga, entretanto, conforme nos ensina Alain Barrère, que eles não são partes de um mesmo todo. Com efeito, se o princípio básico do Estado é o da procura da máxima utilidade social e se os fins da atividade econômica do Estado são diferentes daqueles utilizados para a interpretação da economia privada, não se pode aplicar ao Estado a mesma maneira de ser e agir da economia privada. Em consequência, não se pode falar verdadeiramente de setor público considerado como parte de um todo econômico homogêneo.
No plano teórico, justifica-se a existência — perguntamos — de um domínio próprio, distinto da economia privada e correspondente especificamente à ação direta do Estado, mesmo numa economia nacional onde a estrutura de mercado seja preponderante, como no Brasil?
Para uma resposta afirmativa, basta a constatação da especificidade da economia pública. Com efeito, a economia pública procura, assim como a economia privada, maximizar a utilidade de recursos raros. O Estado, como o indivíduo, é conduzido a procurar ps meios de tirar o maior número de satisfação, ao melhor custo, de um conjunto de recursos limitados em quantidade. Mas uma diferença aparece imediatamente: o Estado procura não as satisfações individuais, mas as satisfações comuns ao conjunto de cidadãos, o que determina análises e consequências diferentes sobre a determinação das satisfações e a apreciação de seus custos.
Sabe-se, ademais, que, na economia privada, é através do jogo do mercado que se ajustam as ofertas e as demandas, que se repartem os recursos, que se determinam os empregos dos fatores, que se fixam as rendas e os lucros, etc.
Fora do domínio obrigatório do mercado e da maximização do lucro, a economia pública, por seu lado, tem um tipo particular de ajustamento, através do qual o Estado fixa a sua renda de acordo com o nível exigido pelo custo das satisfações comuns por ele dispensadas, e determina seus objetivos de acordo com o interesse maior da Nação.
O Estado, enquanto Poder Público, traça os rumos da economia e, enquanto agente econômico, nela também pode e deve atuar. A ele cabe, pois, determinar, em nome do grupo social, o caráter público das necessidades que deve prover e, consequentemente, os meios econômicos aptos a lhes assegurar satisfação. O Estado Moderno é um centro de decisões quanto às finalidades e as grandes linhas da política geral. A ele cabe a escolha política quanto aos fins e a escolha econômica quanto aos meios. Para tanto, dispõe do monopólio do poder que obriga.
Os que hoje se batem afoitamente contra a participação direta do Estado em setores de produção, esquecem-se das transformações pelas quais passaram a sociedade, os regimes econômicos e, consequentemente, próprio Estado. Esquecem-se de que o liberalismo econômico não mais existe, em parte alguma do mundo.
O liberalismo clássico na ordem econômica surgiu em virtude de condições históricas exigidas por uma sociedade eminentemente individualista, para o início da revolução industrial europeia. O Estado, então, abstinha-se de intervir na atividade econômica, para não modificar as condições econômicas gerais e a repartição espontânea natural da renda. As condições do laissez-faire e da livre atividade dos indivíduos tinha primazia absoluta sobre o todo social. Era o “état gendarme”, absolutamente neutro no que se referia ao social e ao econômico. Seu papel era o de propiciar a segurança dos negócios privados e o de reprimir os agentes perturbadores da livre concorrência. Identificando despesas públicas com despesas de consumo, o Estado deveria restringir qualquer atividade econômica, para que a iniciativa individual pudesse contar com a maior soma de recursos disponíveis, em benefício da produção. A intervenção estatal deveria restringir-se aos domínios da polícia, da defesa e da justiça. Quanto ao mais, o Estado se autolimitava na ação simples de árbitro dos comportamentos individuais, nos quais só intervinha para garantir as regras do jogo.
Mas hoje o peso do social sobre o individual é cada vez maior e assim efetivamente tem de ser, para que se consiga a construção de uma sociedade solidária. O próprio capitalismo de hoje é fundamentalmente diferente daquele propugnado por Adam Smith. De fato, se o individualismo gerou o capitalismo, dos excessos do capitalismo nasceu o comunismo.
E hoje o que vemos? O capitalismo se socializa e o comunismo se aburguesa. Enquanto a propriedade privada já começa a ser aceita em países socialistas, para determinados gestores de produção, o capitalismo torna-se cada vez mais um neocapitalismo intervencionista.
Para usar a linguagem tão expressiva quanto atual de François Perroux, passamos do capitalismo “atômico” das pequenas empresas, em que as leis da concorrência atuavam com relativa eficácia, permitindo a formação natural dos preços no mercado, para o capitalismo “molecular” das grandes concentrações industriais que se subtraem às leis do mercado, impondo preços e produtos. E hoje, a bem-dizer, já ingressamos em fase nova, a era das corporações multinacionais gigantescas, que não apenas se furtam às leis clássicas do mercado, mas que escapam até mesmo ao poder do Estado, ora porque se expandem por diversos países, com nacionalidades e estatutos diferentes, ora porque se vão tornando mais poderosas que os próprios Estados onde atuam, colocando-se acima e muito além deles.
O Estado, por sua vez, teve de adaptar-se a essa evolução, não mais resignando-se ao papel inicial de espectador passivo da ordem econômica. Hoje ele passou a atuar em todas as áreas onde se fizer necessária sua presença, pois, em definitivo, segundo Georges Burdeau, o “objetivo do poder é o estabelecimento de uma nova ordem social, não se tratando, como para o Estado liberal, de administrar uma sociedade preexistente, mas sim o de criar uma sociedade nova”.
Essa progressiva passagem de um Estado em suas concepções clássicas para o Estado intervencionista de hoje exigiu e está a exigir continuadas transformações de seu instrumental de ação.
E como as realidades nacionais são diferentes de Estado para Estado, o sistema econômico a ser implantado deve basear-se menos na coerência de dogmas ideológicos do que no atendimento das necessidades reais de cada Estado. Cada Nação deve medir seus fatos políticos, econômicos e sociais, para, através deles, instituir e gerir um sistema que lhe satisfaça, delimitando o que deve ser público e o que pode ser privado.
O problema da delimitação dos setores público e privado
Sob o prisma do raciocínio que vimos desenvolvendo, é difícil delimitar e especificar campos de ação da economia pública e da economia privada, pois que tudo se subordina à dinâmica dos fatos socioeconômicos de hoje, em permanente mutação.
O grande problema do debate “estatização-privatização” reside, na teoria e na prática, nessa dificuldade de delimitação, isto é, na compatibilização exata entre o que é público e o que é privado.
Quando o Estado se coloca na perspectiva de criar uma sociedade nova, necessariamente se vai assistir a um certo grau de incompatibilidades entre os dois setores. Isto porque a construção dessa nova sociedade exige opções políticas em benefício do todo nacional e quase nunca objetivos de caráter eminentemente social poderão identificar-se com fins individuais-lucrativos, que, por sua própria natureza, comandam a iniciativa privada.
Não se quer dizer, absolutamente, que o lucro seja em si um pecado e que todas as atividades terão de ser estatizadas, em função da prevalência maior do social sobre o individual. Segundo o mesmo Burdeau, isso representaria uma “concepção de socialismo primitivo que hoje já está ultrapassado. Mas, sem desvirtuar seu campo natural, os diversos papéis, cujo conjunto forma a vida coletiva, vão encontrar-se erigidos em funções políticas. Donde a politização que afeta todas as relações, todas as atitudes, todos os problemas concernentes à existência do grupo social”.
Tudo, pois, envolve opção política. Quando, por exemplo, o Estado impõe tal ou tal medida a uma indústria, as empresas interessadas na medida nada mais são que um pretexto: o objeto da medida imposta será estimular ou frear tal ou tal produção; convocar ou afastar capitais e mão de obra para este ou aquele setor; agir sobre os preços de determinados produtos, etc. Em resumo o objeto da medida será o modus vivendi de toda a comunidade social.
Ora, se o Estado não pode, a rigor, prever o imprevisível de fatos econômicos e sociais, não pode, em consequência, fixar rigidamente limites precisos a sua ação. Daí a dificuldade de traçar área específicas entre a economia pública e a economia privada.
Em síntese: cabe ao Estado contemporâneo, e não à iniciativa privada, traçar os rumos e os limites de sua política econômica, em função do bem comum e das aspirações nacionais.
O campo de ação do Estado brasileiro na economia interna
Já foi dito anteriormente, na parte da retrospectiva histórica do capitalismo industrial brasileiro, que a ação preponderante do Estado em determinados setores de nossa economia não foi o resultado de uma manifestação coerente de sua vontade, de um plano preestabelecido ou de qualquer orientação de cunho doutrinário. Antes pelo contrário, decorreu essa interferência de circunstâncias várias que o obrigaram a intervir muito mais para permitir a própria decolagem de setores industriais privados do que para invadir áreas que a iniciativa particular julga suas, por direito natural.
Se o Estado brasileiro, como, aliás, todo e qualquer, não pode estabelecer uma delimitação rígida, fixa e permanente, entre as áreas pública e privada, institui ele, entretanto, princípios bem claros, conforme dispõe o Título III da Constituição Federal [de 1967], ao tratar “Da Ordem Econômica e Social”.
A Constituição Brasileira fez opção pelo regime econômico de mercado, de acordo com as tradições socioeconômicas da Nação e seguindo os mesmos princípios que orientam as democracias ocidentais. Consagrando a liberdade de iniciativa como princípio maior, a ordem econômica é, entretanto, submetida a outros princípios constitucionais, como a função social da propriedade, a valorização do trabalho como condição da dignidade humana, a harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção, a expansão das oportunidades de emprego produtivo e a repressão ao abuso do poder econômico (caracterizado pelo domínio dos mercados), a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros.
Tais princípios, antes de serem socializantes, são, efetivamente, orientadores e disciplinadores de um moderno e mais humano sistema capitalista de produção, contrapondo-se, dessa forma, às forças economicamente desagregadoras e intrínsecas a um capitalismo do tipo “selvagem”, que não tem mais razão de ser.
Além dos princípios, estabelece o art. 163 de nossa Carta Magna que ao Estado brasileiro são “facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa…”
A realidade do presente
Cabe agora examinar se o Governo brasileiro vem seguindo os mandamentos constitucionais sobre a ordem econômica ou se, pelo contrário, estaria indo acima e além do que lhe é facultado.
Sabe-se que a atual Administração Federal guia-se pelas intenções contidas no II Plano Nacional de Desenvolvimento, cujo capítulo IV contém “a estratégia econômica do Governo”. Procurando construir uma economia moderna e competitiva, o II PND reafirma a “adoção do regime econômico de mercado, com a forma de realizar o desenvolvimento com descentralização de decisões, mas com ação norteadora e impulsionadora do setor público”.
Vai ainda além o II PND. Suplantando as naturais e já alegadas dificuldades no que diz respeito à delimitação das funções e da dimensão do setor público, o Governo brasileiro, sob o comando firme do Presidente Ernesto Geisel, considera como seu campo de atuação direta, além das funções públicas propriamente ditas (segurança, justiça, etc.), o seguinte:
- os setores de infraestrutura, principalmente em energia, transportes e comunicações. Nessas áreas de concessão de serviços públicos, o setor privado atua complementarmente. Ainda mais: as indústrias produtoras de equipamentos e materiais para tais setores estão na área da iniciativa privada;
- as áreas de desenvolvimento social, que, entretanto, poderão estar conjugadas com a iniciativa privada, como, aliás, vem ocorrendo nos setores de educação, saúde, previdência social etc.
Por outro lado, constituem campos de atuação próprios da iniciativa privada os setores diretamente produtivos, como: indústrias de transformação, indústria de construção, agricultura e pecuária, comércio, seguros e sistema financeiro, ressalvada a função pioneira de estímulo atribuída aos bancos oficiais.
Áreas e funções estão, portanto, estabelecidas, não só no domínio dos princípios e dos planos, mas também em realidade. Com efeito, as áreas de infraestrutura econômica estão, predominantemente, sob a responsabilidade de empresas do Governo. A agricultura, o comércio, a construção, os serviços e as indústrias de bens de consumo não duráveis estão em maioria nas mãos da iniciativa privada nacional. Já a iniciativa privada estrangeira tem presença dominante e excessiva na produção de bens de consumo duráveis, o que é uma distorção.
O próprio II PND reconhece essa distorção entre iniciativa privada nacional e estrangeira. Mas a presença do Estado jamais poderá ser considerada como sendo um excesso. Em números, a despeito da crônica falta de estatísticas, de 2.554 empresas, 33% são nacionais, 39% estrangeiras e 23% estatais, conforme dados da revista Visão. Donde se conclui que não há desequilíbrio gritante entre economia pública e setor privado. O que há, isto sim, é desequilíbrio dentro da própria economia privada, onde os ramos dinâmicos da indústria de transformação — de especial significado em uma estratégia para o desenvolvimento estão sob quase integral controle estrangeiro. O que, em última palavra, é sinônimo de desnacionalização da economia brasileira, com todas as consequências que daí podem advir, a principal delas sendo a possibilidade de o Governo perder o controle político que deve manter sobre as atividades das multinacionais.
Opções de hoje e de amanhã
É profundamente estranho o enfoque sobre estatização-privatização que vem sendo dado por grandes órgãos de comunicação. Efetivamente, os que promovem a campanha desestatizante jamais se lembram de falar em desnacionalização. Insistem, pelo contrário, em bater em uma só e mesma tecla: a presença crescente do Estado na ordem econômica, sem, contudo, apresentar provas em defesa de suas teses. Escamoteando informações, distorcendo fatos, apresentam afirmações discutíveis e controvertidas como se fossem dogmas e verdades absolutas. Mostram a “crescente estatização da economia” como um fato óbvio e independente de comprovação.
Ora, já vimos que um tal enfoque contradiz a realidade. Donde se pode supor, seguramente, que há segundas intenções e interesses às vezes inconfessáveis por trás dessa campanha. Estamos convencidos de que toda essa descomunal movimentação, traduzindo interesses de empresas multinacionais, em nada interessa à verdadeira iniciativa privada de capital nacional, seja ela grande, pequena ou média empresa: Pois o autêntico empresariado nacional sabe muito bem que, quanto mais abertas forem as comportas em favor de uma privatização sem limites, tanto mais será beneficiada a grande empresa estrangeira, através de seus suportes políticos, de capital, de tecnologia ou de reserva de mercados. Quando, ao contrário, o Estado garante para si determinados setores, sempre continuará à disposição da iniciativa privada uma área de atuação que exige menores recursos, em termos de capital e tecnologia. Na verdade, por cima ou por baixo de qualquer sentimento ideológico, está a evidência de que são poucos os grupos privados brasileiros em condições de assumir o comando de setores que exigem sofisticada tecnologia, amplos recursos financeiros e longos prazos de maturação de investimentos. Tudo isso, que é fácil aos grupos internacionais, só o Estado, no Brasil, poderia mobilizar. E é o que deve ser feito.
O Governo do Presidente Geisel, com base na Constituição da República e sob o impulso dos objetivos propostos no II PND, vem ocupando espaços vazios, espaços onde a iniciativa privada não pode, não quer ou não deve atuar: não pode por motivos de incapacidade financeira ou técnica; não quer, por falta de interesse quanto a setores de baixa rentabilidade ou de longo prazo de retorno do capital aplicado; não deve, por razões de segurança nacional ou de estratégia de desenvolvimento.
Diante dessas ocorrências, conjunta ou separadamente, o Estado não tem por que deixar de agir diretamente. Citemos apenas alguns exemplos: a iniciativa privada não pode fazer Volta Redonda e o Estado fez a Companhia Siderúrgica Nacional; a COSIPA, inicialmente de iniciativa privada, não conseguiu acumular capital suficiente e foi entregue ao Estado; a USIMINAS só pôde ser implantada sob a forma de associação de capitais. A Cia. Nacional de Álcalis também veio para cobrir um vazio que a iniciativa privada não teve condições de preencher. O setor de mineração é outro exemplo: nem sempre a iniciativa privada quis aí atuar. Mas há, principalmente, setores onde deve ser vedada a participação privada, seja por tratar-se de serviços monopolistas por natureza (energia, transportes, comunicações), seja por afetar a própria segurança nacional, como é o caso do petróleo, seja para impedir a formação de cartéis privados em setores onde não se recomenda a maximização do lucro, seja, enfim, por motivações nacionalistas ou de preservação e defesa de nossos recursos (mineração pesada, aço, não ferrosos, química básica, fertilizantes, celulose). Assim, tudo o que é infraestrutura, produção de matérias-primas fundamentais, de equipamentos básicos, bancos de fomento e mesmo a comercialização de nossos produtos no mercado internacional, tudo isso deve ficar em mãos do Estado.
O problema da exploração do fosfato de Patos de Minas, dentro desse prisma, não deve ter outra solução a não ser a estatal, através de capitais da União e do Estado de Minas Gerais. Por tratar-se de insumo básico à produção agrícola de um país como o Brasil, que ainda depende em 70% do setor primário para suas receitas externas, não há razão alguma para se permitir o máximo lucro em sua exploração privada, principalmente quando se procuram produtos fosfatados a baixo preço.
Ora, é exatamente esse tão necessário poder do Estado de intervir na ordem econômica que passa de repente, e não mais que de repente, a ser contestado violentamente, sem que se dê conta de uma verdade fundamental a que já nos referimos: toda essa presença do Estado ou é suporte subsidiando a iniciativa privada ou é garantia contra a desnacionalização econômica do Brasil.
O avanço do Estado sobre setores vitais da economia — já se disse no correr dessa polêmica — é a única forma de se resistir à desnacionalização. Estamos, mais uma vez, com a linha editorial que o Correio Braziliense adotou a respeito, quando “considera suspeita qualquer insinuação de que devemos mudar de rumos, até que o empresariado verdadeiramente nacional tenha crescido a ponto de responder, com eficiência, ao desafio da escala que a produção de hoje exige”.
Estamos com o Ministro Severo Gomes, da Indústria e do Comércio, que “ao longo dos tempos tem demonstrado ser um intérprete razoavelmente seguro do pensamento dominante nas esferas reservadas do Poder e que sempre defendeu a tese da ocupação dos espaços vazios, sob a alegação de que, se assim não proceder, o Estado estará permitindo a criação de bolsões que irão desencadear, no futuro, processos críticos com prejuízo dos interesses nacionais”.
“O melhor seria prevenir desde já, impedindo que as multinacionais se espalhem pelo organismo econômico nacional, pondo-o a serviço de interesses não necessariamente nacionais” (Jornal do Brasil, coluna de Carlos Castello Branco).
Vale lembrar que interesses não necessariamente nacionais estão sempre presentes entre nós. A propósito, o Ministro da Indústria e do Comércio viu-se mesmo forçado a impedir a transferência do controle acionário da Consul para a Philips, para que se colocasse o interesse nacional acima do interesse doméstico dessas duas empresas. Com efeito, depois de se beneficiar com empréstimos captados sobre a poupança nacional, aplicando-os em seu plano de expansão, quis a empresa nacional associar-se a uma multinacional, transferindo-lhe o controle.
Ora, não é para negócios assim que o Governo Federal, agindo em defesa da iniciativa privada, implantou todo um sistema de incentivos creditícios, de apoio técnico e gerencial, em função do fortalecimento da empresa privada nacional.
Contra afirmações facciosas de que o Brasil apresenta, no Ocidente, o maior índice de estatização econômica, opomos o fato incontestável de que em poucos países do mundo existe, como no Brasil, tão poderoso, amplo e variado sistema de incentivos e mesmo de subsídios ao setor privado. De fato, multiplicam-se os mecanismos de tal sistema: Bancos de Desenvolvimento, fundos de apoio à industrialização etc., além de inúmeros incentivos fiscais e reduções ou isenções nas alíquotas dos tributos (IPI, IR, ICM etc.)
E a verdade manda que se diga, ainda, que isso tem sido feito através de total mobilização de energias internas e até com sacrifício de amplas camadas da população, como os assalariados, por exemplo. Segundo Bresser Pereira, economista da Fundação Getúlio Vargas, a partir de 1964, o processo de transferência da renda deixou de ser da agricultura para a indústria e passou a ser dos trabalhadores para a indústria, concentrando-se a renda nacional.
Não é menos verdade, entretanto, que o Governo atua, se preocupa seriamente com o problema, procurando equacioná-lo de maneira viável. Há um constante empenho do Presidente Geisel com o conteúdo social do desenvolvimento, preocupação que se manifesta, na prática, através de uma política de melhor distribuição da renda, seja através de medidas diretas de reposição do poder aquisitivo do trabalhador, como o recente e substancial aumento de salários, seja através de medidas indiretas que representam melhoria de vida.
Ressalte-se, quanto à necessidade de valorização da empresa privada nacional, o recente Programa Especial de Apoio à Capacitação da Empresa Privada Nacional (PROCAP) que acaba de ser instituído. Através desse novo plano, o Governo reforça os mecanismos de capitalização da empresa nacional, de forma a impedir, a um só tempo, a desnacionalização econômica e a ampliação do setor público na ocupação dos espaços vazios.
Segundo o PROCAP, o Governo do Presidente Geisel marca sua posição neste debate estatização-privatização-desnacionalização; sem pretender afastar-se de áreas em que só o Estado, no atual estágio de desenvolvimento do País, deve ou está capacitado a atuar diretamente, oferece o Governo novas possibilidades de a empresa nacional aumentar o raio e as dimensões de sua efetiva participação na economia de mercado. Recursos iniciais de 2 bilhões de cruzeiros serão, desse modo, repassados pelo BNDE aos bancos privados de investimento, para que possam subscrever ações em aumentos de capital de empresas privadas nacionais. Há ainda um programa específico de maior apoio às pequenas e médias empresas, ao lado do revigoramento do mercado de ações, o que fará através da nova lei de sociedades anônimas.
Esse elenco formidável de decisões representa, sem dúvida, um instrumento seguro de valorização da empresa privada nacional, a fim de que ela possa chegar a um nível real de competição com as empresas estrangeiras que aqui atuam.
Ora, se a ninguém é justo tirar proveito do sacrifício alheio, se é profundamente injusto sacrificar uma classe em proveito de outra, é totalmente incabível e absurdo pretender que do sacrifício do trabalhador brasileiro tirem proveito, em igualdade de condições, a empresa estrangeira e a empresa nacional.
Desse modo, não é contra a participação do Estado na economia que se deve lutar, mas sim contra a igualdade de condições que a atual campanha privatizante pretende outorgar à iniciativa estrangeira.
Entre estatização e desnacionalização, nós ficamos com o Estado brasileiro. Porque, embora o mundo contemporâneo tenha de aprender a conviver com a realidade das multinacionais, que estão até mesmo na URSS e em outros países do leste europeu, sabe-se como tais empresas podem frustrar planejamentos governamentais em regime econômico de mercado. Sendo as decisões políticas das empresas transnacionais tomadas em suas respectivas series mães, em função de seus interesses específicos, nada nos pode assegurar que tala decisões, quanto à política de investimentos, de produção, de utilização tecnológica ou de reserva de mercados, sejam as que mais convêm aos interesses nacionais.
Conclusões
Vimos que, na gênese do capitalismo industrial brasileiro, não se encontrou uma classe industrial voltada para os reais interesses do País; que esse fato, representando tendências históricas de ligação com interesses não necessariamente nacionais, pode explicar a atual campanha desestatizante; que não houve uma manifestação coerente da vontade do Estado em conduzir a industrialização, nas primeiras fases de seu processo; que o Estado passou a intervir na ordem econômica por razões conjunturais, passando, depois, a atuar mais decididamente em setores básicos ao desenvolvimento, da própria iniciativa privada, com funções de subsidiador e fornecedor de bens essenciais em benefício da empresa particular.
Vimos que o Estado contemporâneo é obrigatoriamente intervencionista, quando quer, principalmente, propiciar o desenvolvimento e criar uma sociedade nova; que nem sempre é fácil definir limites entre economia pública e economia privada; que, apesar das dificuldades, o Brasil procurou especificar campos de ação, reservando-se, entretanto, o direito de intervir na economia, sob diferentes formas de ação, direta ou indireta.
Vimos que a realidade econômica do Brasil não justifica a atual campanha contra uma alegada “posição crescente do Estado na economia nacional”; que, distorções havendo, e as há, essas se localizam mais facilmente dentro da própria iniciativa privada, onde as empresas de fora dominam com preponderância os ramos mais dinâmicos da transformação industrial, em detrimento de um capitalismo nacional autônomo; que a atual campanha pela privatização em nada virá beneficiar o capital efetivamente nacional e, principalmente, nossas pequenas e médias empresas; que a campanha pela desestatização, tal como vem sendo conduzida, é sinônimo de desnacionalização; que, entre estatização e desnacionalização, é preferível a maior presença do Estado na economia de um pais que pretende um desenvolvimento integral e harmonioso.
Estas, Sr. Presidente e Srs. Deputados, as conclusões a que chegamos. Mas se a intenção de concluir comporta uma ideia de ponto final, esta matéria controvertida, que é o debate estatização-privatização, não poderia chegar a termo definitivo, por dois motivos: primeiro, porque esta modesta contribuição não pretende esgotar o tema; depois, porque nos dias de hoje e nos tempos de amanhã estará sempre sujeito a constantes e necessárias transformações o papel do Estado na vida de uma Nação.
Sebastião Navarro Vieira