O texto a seguir foi um discurso pronunciado por João Carlos Fairbanks na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 8 de novembro de 1937, logo antes do seu fechamento pelo Estado Novo. Tendo grande repercussão na Assembleia e na imprensa, foi considerado pelas pessoas mais representativas da sociedade paulista como uma aula sobre a arte. O tema era a criação do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico de São Paulo, que amarraria a Pinacoteca de São Paulo e a Escola de Belas Artes, subordinando a comunidade artística a incompetentes e imorais. Em defesa das Belas Artes, João Carlos Fairbanks traçou a missão artística do Estado Cristão.

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A Escola de Belas Artes, preservando e incentivando a verdadeira Arte, exerce verdadeira benemerência pública, pois que, sem ônus para o erário, realiza uma das mais delicadas funções sociais, de verdadeira profilaxia moral e cultural, do Estado moderno.

Vivemos uma época, Sr. Presidente, em que o desvario pela originalidade, posto que negativa, tem conduzido à contrafação da arte, ao ponto de pretenderem certos aproveitadores da psicastenia social, substituir o belo pelo horrível. Para o materialismo agnóstico, que desconhece ou abstrai em Deus e nas diretas criações de Deus o Absoluto e o efeito do Absoluto, tudo é relativo, o bem e o mal. A sanidade e a psicose. De sorte que inconscientemente propugnam seus sequazes pela psicastenia artística, abusando da famosa liberdade de cátedra, de onde previamente se expulsa Deus, para mais fértil semeadura da degenerescência. Ao Estado, se não pretender erigir-se em vasto manicômio, deve interessar a preservação e o acréscimo dos sãos mentais, e portanto o incentivo à arte, pelas sadias emoções de estesia, que ela provoca nos seres humanos.

João Carlos Fairbanks

Arte implica em harmonia, ou seja, em feliz concordância do subjetivo ao objetivo circunjacente. Sentimos harmonia na disposição dos órgãos de nosso corpo, em relação uns aos outros, e ao conjunto vivificado pela alma, provocando o exercício das respectivas funções.

O Sr. Nelson Ottoni de Rezende — Que é que Vossa Excelência acha de belo horrível?

O SR. JOÃO CARLOS FAIRBANKS — É o morribilíssimo excedendo ao horroroso, o abjeto. A arte, podendo ser antiga ou moderna, só não pode ser a glorificação do monstro e da monstruosidade, tais como certas deformações intencionais, como as da elefantíase.

O Sr. Alfredo Ellis — O micróbio pode ser belo e é horroroso.

O Sr. Nelson Ottoni de Rezende — Mas nele não há harmonia.

O SR. JOÃO CARLOS FAIRBANKS — A harmonia só existe na proporção. O micróbio é belo, como tudo o que proveio da mão do Criador da Beleza. A tela que o representar será bela, se lhe não deformar a natureza, e assim merecerá o nome de obra de arte. Bela é em si toda a criação natural, existente no mundo! Imundo, que é o contrário de mundo (do verbo mundare, purificar) será a deformidade do mundo, isto é, do puro, como tal criado.

Sentimos a harmonia nas órbitas dos astros, gravitando ao redor do sol, como, no infinitésimo átomo, os elétrons em volta aos prótons. E por quê? Porque compreendemos que o Absoluto na Sabedoria, o Ser sempre em ato, impotencial para a contingência pelo seu braço divino, assim os impulsionara na tangente às respectivas órbitas — perfeitas no infinitamente grande ou no infinitamente pequeno, na coparticipação da perfeição da Causa original!

No imenso conjunto de harmonias, do micróbio ao homem, do homem ao astro, do astro ao Sol, do Sol a outros sóis de outros sistemas planetários, numa série que vai do protozoa ao infinito elevado à potência infinita, surgem igualdades a reger o sublime equilíbrio orquestral, como o do cântico matinal de Adão e Eva, no Paraíso Perdido, nas relações de certas partes entre si ou entre elas e os respectivos todos, de que sejam partes.

A igualdade nas relações recíprocas de quantidades assim tão díspares, é o anjo tutelar da harmonia.

E constitui a proporção, filha por seu turno de duas perfeições, a da forma e a do número, da pureza geométrica e pureza aritmética.

Ora, Sr. Presidente, justamente porque puras e perfeitas, a geometria e a aritmética independem das paixões humanas, e invariam no respectivo desconhecimento de sua mesquinha história.

São-lhe relativamente absolutas, na necessidade de suas leis imutáveis mesmo em face à frágil humana contingência. É por isso que, para o ateniense de ontem, como para o paulista de amanhã, a cornija do entablamento dórico e a voluta do capitel jônico foram e serão o motivo de nobre emoção estética. Eternamente representando a perfeição da forma, só não agradarão aos disformes ou deformados espirituais, objetos dos cuidados psiquiátricos, porque menoscabam a pureza do mundo, adorando a corrupção do imundo.

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Idem na música. Seja a corda do violino A M B N em que os pontos M e N fossem os conjugados harmônicos em relação a A e B. Às margens do Pireu ou do Amazonas, como na Eternidade, subsistindo a proporção:

A M     A N
——  = ——
B M     B N

subsistirá harmonia nos sons emitidos, pela tangedura desses pontos em conjunção.

Em tudo, a variedade na unidade, como no infinito, poderão variar os números da proporção, sempre subsistindo uma harmonia das relações, expressa pelo símbolo da igualdade.

A música de Carlos Gomes, disse-se, foi a italiana. Na harmonia da respectiva unidade, bem traduziu a variedade dos tufões da selva ameríndia, expressos na sinfonia d’O Guarani.

Como a música de Chopin traduziu o desespero de uma Pátria que não queria morrer!

Aquela arquitetura. Essa música. Tal poesia — a do Virgílio, a de Camões, a do Shakespeare e a de Dante hão de sobreviver perenes como a racionalidade dos homens, e como a pureza dos mundos de Deus! Não envelhece, porque refloresce, neste século, nos versos de D’Annunzio e de Rabindranath Tagore. A luz do sol não morre, porque renasce em cada alvorada. Assim a do gênio, Sr. Presidente.

La Gioconda, ou Mona Lisa

A pincelada magistral do sorriso da Gioconda refletirá, na teoria dos milênios, a própria Vida, imperecível, nos céus, como a Alma da Vida! Perdurável, na Terra, como da Vida o plasma celular! E fará lembrar aos fúteis, aos cruéis, aos devassos a verdade sobre a vida, esculpida nos versos de Longfellow:

Life is real, life is earnest,

life is not an empty dream

porque a Arte que a simboliza não é sonho vão, mas a realidade e a perfeição harmoniosa da realidade, obrigando a conformação à dor e ao infortúnio, inseparáveis ao amor, causa da própria Vida!

Portanto, expressão da causa da vida, a verdadeira Arte não pode conter a gargalhada do jogral ou a impudícia do obsceno. Por isso, Sr. Presidente, na poesia shakespeariana, Jessica não estava alegre, justamente por sentir-se feliz, ao escutar a doce harmonia da música suave. E Lourenço, em abono, apontava-lhe o exemplo dos potros selvagens, dispostos ao disparo e ao rincho irracionais pelo ruído da trombeta, mas serenos e tranquilizados pela emoção da verdadeira música.

Teria Shakespeare, em pleno século XVI, nesse exemplo do quadrúpede, pretendido chamar ao caminho da regeneração racional certos homens do século XX, tão afastados da melodia, da harmonia da música verdadeira como fanatizados pelos ruídos psicotécnicos das trombetas dos jazz-bands?

De qualquer forma, Sr. Presidente, ao Estado cristão, na muralha da Arte cumpre antepor o mais forte baluarte aos arremessos de certa e negativa civilização destruidora, insuflada pelos ainda não arrepesos do deicídio da Gólgota, mas desinquietados pelo castigo do sangue que, por sobre si mesmos, imploraram um dia viesse a cair.

No encerramento das comemorações pró-Cristo Rei, em Campinas, foi-me dado desenvolver, há dias, a tese da verdadeira e da falsa civilização, isto é, da que prostitui e da que santifica a arte.

A dos quais, em Jerusalém, pela voz da falsa elite dos fariseus e dos doutores exclamava:

Nolumus hunc super nos regnare

A que responde, há 20 séculos, pela voz do cristianismo, a outra civilização, a verdadeira, a positiva, a impecável: “oportet illum regnare” — consoante o ensino de São Paulo.

O Conselho de Orientação Artística. A Escola de Belas Artes. A Pinacoteca, têm entre nós benemeritamente, nas trincheiras do culto ao Sublime procurado realizar a arte da civilização cristã. É preciso que tais institutos não pereçam, para que o bárbaro não tripudie em São Paulo. E para que também Cristo reine na Arte.

João Carlos Fairbanks
Discurso pronunciado em 8 de novembro de 1937. Publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo em 7 de dezembro de 1937. Foi suprimido o trecho relativo a um aparte de Paulo Duarte.