Este é o segundo artigo de quatro (e o mais sintético) da série “O sentido do federalismo e da autonomia”, publicada por João Carlos Fairbanks ainda nos primeiros meses da Ação Integralista Brasileira. O título original é “A moeda estadual”. Veja-se também: A revolta dos Municípios.
A moeda estadual
Que é autonomia? “Direção própria daquilo que é próprio”, define-a João Mendes, como sempre iluminado pelo fulgor aristotélico-tomista. O “próprio” é a ideia antagônica do “comum”. A “propriedade” é justamente o oposto à “comunidade”. É impossível, portanto, simultaneamente o governo ser “próprio” e ser “comum”. Será exclusivamente uma coisa ou outra. Se o governo for “comum”, exprimirá a vontade geral da Nação e portanto será governo nacional e soberano — porque soberania significa vontade geral. Se for governo “próprio” não será nem nacional, nem soberano, nem exprimirá vontade geral, mas a vontade particular da população de uma zona ou região municipal ou provincial. A soberania tem por característicos a unidade e a totalidade; o governo das várias províncias ou municípios é peculiarizado pela pluralidade e pela parcialidade. Os governos de São Paulo, Bahia, Minas e Amazonas serão plurais nos aspectos peculiares a essas circunscrições e serão parciais não tanto porque se adstrinjam aos respectivos limites geográficos, mas sobretudo, porque não possam refletir a vontade geral, comum, soberana do Brasil inteiro.
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A nós, paulistas, de quaisquer ou nenhum partido, essas ideias básicas devem estar bem claras na discussão constitucional. É por considerar a autonomia como fagulha sagrada a alimentar bem acesa e viva a soberania nacional, que São Paulo, em inextinguível anseio de brasilidade, nascido em São Vicente e desenvolvido no bandeirismo, exige bem fixadas e nítidas essas noções irredutíveis de autonomia e soberania.
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Em outras palavras, São Paulo autônomo quer acatar, pela ação de seu governo “próprio”, a vontade geral do governo comum do Brasil. Exige, em natural reciprocidade, que o governo “comum” se satisfaça como tal, e não queira invadir a órbita do que a São Paulo é “próprio”. Por seu turno — e mais tarde desenvolveremos o aviso — os municípios de São Paulo já não toleram que em seus governos “próprios”, concernente a suas peculiaridades, intervenha o governo, também próprio, do Estado. A lua gira ao redor da terra, a terra ao redor do sol. Este é o governo “comum”, que ilumina os dois governos próprios — terra e lua. Deus nos livre da revolução sideral que significaria a invasão da órbita da terra pelo sol ou da lua pela terra.
Livre-nos Deus, igualmente, de, na futura constituição, como na de 1891, continuarmos nessa confusão entre governo “comum” e governos “próprios”.
O governo “comum” concretizará, no máximo, o interesse “geral” da Nação e no mínimo, apenas, atingirá o “particular” das circunscrições federadas e estas as dos seus municípios. Pertencerá ao governo “comum” articular e superintender:
a) a defesa nacional, portanto com capacidade de veto aos planos rodoviários, ferroviários, fluviais etc. dos governos próprios, se porventura comprometendo a defesa nacional;
b) representação diplomática internacional, obediente a cujas diretrizes os governos próprios poderão celebrar contratos internacionais em matéria comercial;
c) legislação de direito substantivo e processual, os prazos então sendo fixados pelos congressos estaduais, variando de acordo com os meios de transporte locais;
d) tipos escolares padrão (Universidade, ginásio, escolas profissionais modelos para os estados e municípios);
e) legislação a mais uniforme possível, a que se adstringirá a dos estados na organização de sua autonomia política. O estrangeiro custa a compreender como, num mesmo país, “vereador” em São Paulo se traduza por “intendente” no Rio, “conselheiro” na Bahia, onde prefeito é designado por “intendente”, que em Minas se traduz por “agente executivo”. É mais prático uniformizar tudo quanto, uniformizado, não embarace a autonomia administrativa — estadual ou municipal — que é a única que importa no terreno prático;
f) fixação do nome, peso, tipo, valor e inscrição das moedas.
Nesse mínimo de administração e máximo de política se enquadra o governo “comum”, soberano, da Nação. [1]
E, reciprocamente, no máximo de administração e mínimo de política, dentro das normas do quadro “comum” e soberano, começará a vida dos governos “próprios”, o de São Paulo e seus municípios, inclusive. [2] Satisfeita para ambos os governos a fórmula que Aristóteles encontrou para todos os seres: unidade na essência (governo “comum”); variedade na forma (governos “próprios”). E que Hoover sintetizou: centralised ideas, decentralised execution.
E aí é que o povo paulista começará a perceber quanto nós, integralistas, somos pela verdadeira autonomia, mais do que ninguém. Porque, para nós, o Estado é a N dimensões, é pluridimensional. A política é uma simples dimensão e das menores. As outras dimensões — as sociais, comportando economia, salário mínimo, preço mínimo, salubridade, higiene, cultura, serviços públicos, agricultura, indústria, comércio — essas é que importam — e essas nós damo-las não à Nação, pelo seu governo “comum” essencialmente político e acidentalmente administrador, mas aos Estados particulares, pelos seus governos “próprios” e vice-versa, essencialmente administradores e acidentalmente políticos.
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Quer o paulista médio ter um sinal dessa vantajosa e certa orientação dos integralistas? Por ela, São Paulo poderá emitir papel-moeda, como o emitem os Estados particulares nos Estados Unidos. [3] Assim, o Missouri emite, mediante termos de lei federal, dólares, que é a moeda federal, mas não emite nem libras, nem francos, nem liras. Da mesma forma, São Paulo poderá emitir mil-réis, que é a moeda brasileira, o que significará o governo “próprio” emitindo a moeda “própria” de acordo, porém, com o peso, o valor, a inscrição e a denominação da moeda, prefixados pelo governo “comum” do Brasil (Const. Fed. art. 34, n. 7).
O alcance prático é imenso: São Paulo nunca pôde, nem poderá organizar seu crédito agrícola, enquanto não possuir emissão “própria”. A emissão “comum” do governo “comum” federal, mesmo que totalmente para esse fim fosse empregada em São Paulo, seria insuficiente a uma perfeita organização creditória, em que crédito venha a ser “direito” do agricultor e não favor ou esmola.
Tudo isso, na Constituinte, deve ser debatido com critério, energia e inteligência.
Porque tudo isso tem alcance, para nós paulistas, muito mais prático que um exército regional rotulado de polícia e vagos pruridos separatistas, que com a destruição do todo brasileiro acarretariam o aniquilamento da parte paulista. Bom senso e vantagens práticas — eis o que deverá constituir nosso lema.
João Carlos Fairbanks
Folha da Manhã, São Paulo, 7 de abril de 1933.
Notas do Site
[1] Escreve o autor, no segundo artigo desta série, Distribuição orçamentária: “Enquanto a Nação quiser intervir no que disser respeito ao interesse peculiar dos Estados, ou estes no comum daquela, será fatal a discórdia, como fatal é a discórdia no lar do jovem casal em cuja administração íntima os pais ou sogros queiram intervir autoritariamente. A Nação é o velho casal aposentado, a que se deve o respeito à direção política, mas a que se deve poupar o trabalho administrativo da fazenda pátria além de um mínimo necessário”.
[2] Na Câmara Municipal de São Paulo, em 1951, o autor propôs a criação do Estatuto Nacional dos Estados (Províncias) e do Estatuto Nacional dos Municípios, para realizar a discriminação da política “comum”, sob a qual seria facultada a ampla administração “própria”.
[3] O Federal Reserve System norte-americano parte, não da competência administrativa de cada Estado, mas de bancos autônomos regionais. Tal modelo, portanto, foi defendido dessa forma pelo Partido de Representação Popular, criando uma descentralização emissora subordinada à unidade da política monetária, pela organização descentralizada do Banco Central, com uma seção autônoma para cada uma das cinco regiões do Brasil.