Nos fins de março do corrente ano deverão reunir-se, em São Paulo, os senhores vereadores do Partido de Representação Popular, com exercício em diferentes municípios paulistas, sob o duplo desígnio: 1) de estudar o problema municipal à luz do Direito constituído e do constituendo; 2) de se fixarem as bases para a plataforma dos candidatos que, sob legenda própria do Partido, irão disputar a eleição para a Assembleia estadual.
Honrado com a designação de meu apagado nome para a composição duma das Comissões, a da Administrotécnica Municipal — achei de bom alvitre, com sugestões de ordem prático-administrativa, tecer comentários enfeixados na epígrafe supra, e dando à publicidade outra coisa não solicito senão as correções dos doutos para as numerosas imperfeições que certamente terei cometido.
Por outro lado, devendo, em tal sentido, abordar problema filosófico-doutrinário, quero de antemão deixar explícito que, fiel aos princípios: 1) quem obedece não erra; 2) a submissão é a base do aperfeiçoamento, não terei dúvidas em retratar-me dos erros de cuja evidência venha a ser convencido, pelas duas Autoridades — a espiritual e a temporal — que reconheço máximas, isto é, a da Igreja, de cujo Ministério, infalível não deseja a fragilidade de minha ignorância apartar-se e a do Partido de cuja doutrina tenho sido eleito vexilário em mais duma Assembleia. Só os erros é que serão meus, exclusivamente meus. Portanto, na correção que deles se me apontar, só eu terei a aperfeiçoar-me.
I
A alma e o corpo municipais
Partido de tendências espiritualistas e cristãs, o Partido de Representação Popular, admitindo duas soberanias — a de Deus e a de César — reconhece a Primeira como absoluta, perfeita e eterna e a segunda, que lhe é sujeita, relativa, contingente e efêmera.
O paradigma ideal para a organização da segunda deve ser a imitação, tão próxima quanto possível, da perfeição da Primeira. Assim, para que nosso pensamento tenha conteúdo intrínseco, não podemos deixar de visualizar o organismo político-social senão pelo prisma ideal do Corpo Místico de Cristo, causa eficiente das soberanias temporais, verdadeiro Rei (“por Mim reinam os reis, imperam os imperadores”), pelo qual São Paulo o explicou na primeira Epístola aos Coríntios (capítulo 12, versículos 12 e 13), in verbis:
“Porque, assim como o corpo é uno e possui vários membros, e todos os membros do corpo não obstante múltiplos constituem um só corpo, assim também Cristo. Porque em um mesmo espírito temos sido batizados todos para sermos um mesmo corpo, quer judeus ou gentios, quer livres ou servos, todos temos haurido dum só Espírito”.
Eis rapidamente exposta por São Paulo, o fundamento da filosofia integralista: a unidade de organismo — na variedade das faculdades daquela e dos órgãos deste.
A simples observação cosmorama leva a concluir que o princípio de tal unidade, acompanhada de tais variedades, preside à Lei Eterna, que subsiste na mente do Criador e preexistiu à criação, e Lei Eterna essa que, segundo Santo Agostinho, teve por escopo conservar a ordem natural e impedir sua perturbação (ordinem naturalem conservari iubens, perturbari vetans). Oito séculos mais tarde, Santo Tomás confirma a lição agostiniana, fazendo ver a que a Lei Eterna era a razão da divina sabedoria segundo a qual se dirigem todos os atos e ações.
Do micróbio ao Homem, do protozoário ao planeta, subsiste uma ordem natural imperturbável, ou uma geral razão das coisas para suas finalidades (Mercier), segundo a qual cada planeta possui sua órbita unitária própria na variedade total planetária a gravitar ao redor do Sol. E que se quase todas as folhas devam exercer a função clorofiliana, vários sejam os respectivos aspectos morfológicos.
Isso implica em concluir que na natureza impera o regime federativo, a variedade autonômica das partes, harmonizando-se à unidade federada do todo. [1]
Aristóteles, alguns séculos antes de Cristo, chegou a essa mesma conclusão. E Einstein, quando procura atingir uma equação única, abrangendo a imensa variedade de fenômenos naturais na realidade, concorda com Aristóteles… com 25 séculos de atraso.
Ao redor desse foco de luz inextinguível, que é a Lei Eterna, pode a lei humana positiva, gravitar ou, pelo abuso do livre arbítrio, desviar-se. Desviando-se, a sociedade cairá no abismo, como o astro que, escapando pela tangente, a órbita solar se precipitasse pelo espaço. Gravitando ao redor da Lei Eterna, a lei diz-se lei natural ou conforme ao direito natural e Santo Tomás a definiu como sendo a “participatio legis aeternae in rationali creatura” (a participação da lei eterna na criatura racional).
Prenote-se que, em obedecer e sujeitar-se, pelo direito natural, à Lei Eterna, encontra o homem seu mais alto galardão de liberdade. O nobre e bem-intencionado Ulpiano, com o ser pagão e, portanto, destituído das luzes do cristianismo, definiu a lei natural como aquela que a natureza ensinaria a todos os animais, entretanto, se é certo que os animais se sujeitam a leis biológicas naturais, também é certo que não podem ser sujeitos de direito. Cícero, na oração Pro Milone, incidiu no mesmo erro, já em grau menor, definindo a lei natural como “non scriptam sed natam esse largem, quam feris natura ipse prescripsito”. A refutação é a mesma: a fera sujeita-se à lei natural por mero instinto, como quando, por exemplo, amamenta ao filho. Entretanto, não sendo criatura racional, não poderia ser sujeita do direito natural e reivindicá-lo, porque só pela racionalidade se manifesta o sujeito do direito. Não basta o instinto para o exercício do direito natural, de vez que por ele coparticipam os setores da ratio divina vel voluntas Dei que é o motivo da Lei Eterna, e os irracionais, como a fera do exemplo de Cícero, justamente porque destituídos de razão e de vontade, não podem coparticipar desses divinos atributos informadores da Lei Eterna.
II
A sociedade política — fenômeno natural
Admirável, não há dúvida, a organização de certos animais — entretanto sempre instintiva, não racional, e por isso fora da ordem jurídica. Herbert Spencer, no seu estudo sobre a justiça sub-humana, aponta o caso dos bisões: quando atacadas as suas manadas, formam quadrados, em cujo interior dispõem as fêmeas e os seres ainda desenvoltos, os machos ficando na periferia para a defesa. Eis aí um tipo de grupo espontâneo e natural instintivo, análogo ao que nós, seres racionais, costumamos constituir como grupo natural municipal. Uma, duas, várias famílias de bisões, organizados para a defesa, quando o grupo rudimentar é atacado. E eis a ordem federativa: a unidade do grupo, a variedade das famílias e dos seres agrupados. No entanto, superado o perigo, o grupo, precisamente porque irracional, dissolve. Por falta de racionalidade, o bisão não abstrai nem generaliza, e, portanto, é incapaz de concluir que o perigo superado ontem pode vir a repetir-se amanhã. Nem que o elo assim autônomo — federativo precisaria vir a perdurar. O homem, precisamente porque racional, abstrai, generaliza, prevê e porque previu, provê. Observada e compreendida sua natureza racional, de seus semelhantes e a irracional do meio físico a ser vencido para o bem comum, os seres humanos se dispõem em sociedade permanente, como primeira manifestação da vida de relação. Essa sociedade se organiza politicamente em Estado, para perseguir fins de comum benefício, um dos quais é tutelar o direito, isto é, conhecer do justo e do injusto, para que a cada participante do grupo social seja dado o que lhe seja próprio. A sociedade se organiza, se dispõe em organismo. E essa simples expressão — organismo — abre um tesouro de cogitações ao estudioso do direito natural. Organiza-se para quê? Para constituir o Estado. E daí um trabalho de imaginação, em generalização e abstração. Os homens em sociedade criaram, sob o nome de Estado, uma ficção, uma pessoa abstrata, em que generalizam a vontade comum de todos, e assim nasceu a primeira Pessoa Ideal de Direito natural público, balbuciando as primeiras linhas do Direito constitucional. Sim, do Direito constitucional. Mas o constituído procede do instituído: a Constituição provém das instituições — das Famílias, dispersas num certo território, urgindo de alimentação, de abrigo, de defesa, e dos grupos nascidos da divisão do trabalho ou funções, em que os profissionais ou artífices, membros destas famílias, se teriam especializado e daí o berço da primeira sociedade político-estatal — a do Município.
Notemos, entretanto, que para chegarmos a essa realidade — a da polis ou do Estado-Município —, partimos duma abstração: a de que ela se teria organizado, isto é, se disposto em organismo. E nesta simples expressão — organismo social — estamos dando razão a São Paulo na primeira Epístola aos Coríntios, supracitada. Organismo, no nosso obscuro modo de ver, é a articulação da variedade de órgãos diferentes, com característicos próprios, na unidade funcional de um fim único. Admitir que a Sociedade se haja organizado em polis é admitir que inúmeros órgãos — diferentíssimos entre si, como em nosso corpo e cabeça, tronco e membros — se hajam disciplinado para uma função final e única — a função política procurando um bem comum a ditos órgãos, como cabeça, tronco e membros procuram a função vital a nosso ser humano. Ele, como a natureza, impõe suas leis à natureza social. Ora, observou muito bem Bacon que “naturae non imperatur nisi parendo” — isto é, só se domina a natureza obedecendo-lhe a suas leis. Queremos conhecer a lei que governa o organismo da sociedade dos homens? Procuremos primeiro conhecer o Homem e seu organismo biológico. O Homem — corpo mais alma, bafejado pela graça providencial, natural e sobrenatural — é organizado. Isto é, disposto em órgãos variados para a unidade funcional comandando o desenvolvimento biopsíquico. Esses órgãos são, do mais simples ao mais complexo: a célula, as várias células, o tecido celular, o organismo total. Tal pessoa é o Estado, cujo organismo é também disposto em células ou Municípios, o emaranhamento de cujos tecidos dá surgimento às Províncias (erroneamente entre nós apelidadas de Estados) e aos Territórios, todas essas variegadas Pessoas públicas interagindo-se na unidade da União federada.
Repare-se que etimologicamente, federação, de foedus, eris, significa a fé da aliança de tal maneira irretratável e irrompível que Lucrécio e Virgílio generalizaram a expressão foedus, o significado de leis constantes na harmonia natural que é a própria constância, da harmonia federativa, da Família dos Homens à Família dos Planetas. Acompanhando o lucidíssimo João Mendes Júnior, faço questão de usar o verbo dispor: o Estado é disposto, não composto, muito menos dividido, em Províncias e estas em Municípios. Composição e divisão dão ideia de diferenciação possível. Só a disposição de peças várias representaria a integral unidade federativa.
III
As naturais funções municipais
O Estado é, portanto, disposto em células que, por seu turno, se dispõem em tecidos, afinal dispostos no organismo total nacional. Não importa que o Estado seja rudimentar como o de certas tribos, egressas da selvageria, ou dotado de esplêndida civilização. Assim como na natureza há protozoários animais unicelulares e metazoários, podemos admitir Estados apenas municipais — polis —, tricelulares e até a Confederação Geral de todos os Estados, cada um deles disposto em numerosos Municípios, entre si guardando suas variedades específicas, como a célula sanguínea da óssea ou muscular, mas todas visando a função vital, que no organismo público do Estado se chama função soberana.
A unidade — alma (com suas faculdades) mais corpo (com seus órgãos e funções) — do organismo municipal leva a concluir por analogia, que a função da alma seja política (provendo à ação oportuna), e a do corpo municipal seja administrativa.
A alma do município, como a de todas as Pessoas, possui três faculdades:
I — a intelectiva, visando a verdade, incumbência do Poder Legislativo ou da Comarca Municipal. A Lei é aquilo que o homem, como causa segunda, marca e constitui (lei positiva) e que para preservar a ordem deve estar de acordo com a lei natural, pela qual ele (homem) coparticipa da lei eterna, preexistente na mente criadora da Causa Primária.
II — a volitiva — faculdade exercível pelo Poder Executivo, pondo em vigor até coercitivamente a Lei.
III — a sensitiva — incumbência do Poder Judiciário. Este, conforme ensina João Mendes (Direito Judiciário) é eminentemente nacional. Somente a soberania — existindo na Nação inteira e inteira em cada uma de suas partes — poderia ser suficientemente sensível para que o atentado cometido num canto longínquo repercutisse em todo o organismo nacional. Não obstante, assim como às nossas Províncias (alcunhadas de Estados) cabe a organização do Poder Judiciário, entrosado no Tribunal (pela necessidade de manter a supremacia da lei tribunal e a unidade da jurisprudência), parece que razão assiste a nosso ilustre correligionário, colega e suplente na Câmara, Senhor Antônio de Toledo Piza, quando pleiteia a manutenção do jurado de paz nos Municípios para a realização e julgamento de ações simples de alçada restrita. Mais razão ainda tem S. Excia. quando propugna pelo restabelecimento do juiz togado (ainda não de Direito) nos termos ou municípios cuja presença local, além de facilitar a instrução dos processos pela maior facilidade nas diligências, exerce a ação catalisadora sobre a manutenção dos bons costumes dos municípios. Esses aspectos eu os aprecio em Geopolítica Povoadora, insistindo em mostrar a ânsia pela qual no interior se aguarda a partida do juiz, para que certos atos inconfessáveis se pratiquem: por exemplo, o do procurador que compra para si mesmo o imóvel, objeto do mandato. O pensamento é este: quando o juiz voltar, a bandalheira estará feita e até registrada…
Se assim a alma política dos Municípios pode vir a ser satisfeita em todas as suas faculdades, vejamos se o mesmo acontece ao corpo administrativo.
Nos organismos físicos como nos morais, a separação entre alma e corpo constitui a morte. O corpo municipal, fazendo o papel de função cerebral, deve possuir um órgão ligado à alma política.
Esse órgão seria entre nós uma espécie de “prefeito-político” e corresponderia ao lord-meyer ou mayor ou maire.
Adivinho a objeção — para quê dois prefeitos, quanto custará a duplicidade? — Para respondê-la, não estou obrigatoriamente exigindo dois prefeitos: estou comprovando que duas são as funções do órgão executivo prefeiturial. Está claro que em municípios evoluídos — São Paulo, Campinas, Santos, Botucatu, Bauru, Presidente Prudente, Marília, Londrina, Ponta Grossa, Varginha, Juiz de Fora, Campo Grande, Petrópolis, Piracicaba —, a heterogeneidade crescente dos serviços exigiria a especialização entre duas pessoas: nosso mayor e nosso city manager seriam em municípios mais adiantados dois indivíduos, o prefeito-político sendo eleito e o agente-executivo sendo nomeado.
Nos municípios menos evoluídos o Poder Executivo seria exercido por uma só pessoa, abrangendo as duas funções.
Assim seria como, numa ferrovia desenvolvida — a Central, a Paulista, a Sorocabana —, um engenheiro é o chefe da linha e o outro o do tráfego, e, nas menos desenvolvidas, um só exerce todas as funções técnicas. Nos municípios pouco evoluídos, dois funcionários — o prefeito e o secretário, este fazendo as funções de tesoureiro — exerceriam a totalidade da atividade burocrático-administrativa.
João Carlos Fairbanks
“Idade Nova”, 29 de junho e 6 e 13 de julho de 1950.
Nota do Site
[1] O autor explica melhor, em outro artigo, sua concepção do regime federativo: “No meu obscuro modo de entender, somente compreendo o Federalismo como sinônimo de descentralização, que, por seu turno, deve ser o antônimo de anarquia ou desordem. […] O Federalismo — isto é, autonomia local — é força centrípeta, de união, ao passo que, pervertido em Federalismo político, como entre nós tem degenerado, na descompreensão da era republicana, ele será como aqui tem sido — força de desunião, criadora de separatismos ou ridículos pruridos de soberanias provinciais” (Pesquisas ecológicas possibilitadas pela localização de escolas interioranas de Engenharia e Agronomia, A Marcha, 3 de fevereiro de 1956).