Não há que duvidar. A pergunta que a si mesmo fez Joseph Piller, formulando, para argumentar, a questão de se saber se “federalismo e corporação são inconciliáveis, como dois termos de um dilema entre os quais é preciso optar”, reflete menos uma dúvida possível, em mentalidades aproximadamente reacionárias, que uma tese levantada para facilidade de uma conclusão negativa. O contrário seria o absurdo da sofística. Pois é certo que a reposta, por ele dada, vem-lhe imediata da realidade dos fatos sociais cujas tendências contemporâneas evidenciam que “a ordem corporativa não somente é compatível com o princípio federalista, como, ainda, este princípio deve necessariamente condicionar o desenvolvimento da corporação, se quiser atingir os seus objetivos”.

Mas, a pergunta em questão traduz, além disso, o estado de espírito dos que erroneamente supõem existir antinomia entre federalismo e corporação, tais como se fossem realmente princípios antagônicos. E não há erro maior. Sobre não serem princípios, que se excluam reciprocamente, são termos de um princípio único.

Exemplifiquemos. Se o regime federalista tem, justamente, como razão de ser as diversidades regionais, sob cujo critério administrativo devem ser satisfeitas as necessidades próprias de cada uma das unidades federadas; e, por outro lado, a doutrina do corporativismo integral encarece a necessidade de se esperar, na prática, uma descentralização administrativa, instituindo-se os órgãos corporativos, de âmbitos provinciais e municipais, com autonomia bastante para atenderem ao livre jogo do governo local, ajustando às respectivas condições geográficas e sociais — resulta, logicamente, que os dois termos se completam e se realizam um em função do outro. Tanto mais quanto, consoante a observação de Piller sobre o problema da organização suíça, que, de certo modo, se aproxima do nosso caso, o federalismo deve ser a base da estruturação corporativa, sem que isso implique em dizer-se que as corporações se desenvolvam apenas no plano local e provincial, negando que algumas, dentre elas, se devam igualmente organizar-se no plano nacional. Não. A verdade é que, realmente, se torna necessário evitar que se concentrem nas autoridades corporativas federais as atribuições que os órgãos provinciais ou locais podem normal e perfeitamente assumir. “Mesmo as corporações cujas atividades ultrapassem o território cantonal — dissera o autor de Corporation et Fédéralisme — e que deverão, portanto, organizar-se no plano intercantonal ou nacional, guardarão no quadro da comuna e do cantão uma plena autonomia em todos os domínios nas quais a uniformização não se imponha”.

Ademais, tudo nos leva a crer que, atualmente, as corporações representam, por sua natureza e objetivos, um dos mais sólidos agrupamentos naturais intermediários entre o Estado e a pessoa humana, com a vantagem de ser, outrossim, um centro eficiente de integração política do indivíduo na coletividade nacional.

Do mesmo passo, a tese se reforça no exame das características do Estado Moderno. Assinalando-as, ressaltou delas Oliveira Vianna, como principal, a tendência cada vez mais acentuada para as delegações do poder legislativo, dando em resultado uma ampliação cada vez maior da competência regulamentara das autoridades administrativas. “Em todos os países, com efeito — observa o sociólogo — este movimento do ‘Estado Legislador’, de Schmidt, no sentido da abdicação de uma das suas funções fundamentais, se vem processando com mais ou menos generalidade e rapidez, como consequência mesmo do seu próprio desenvolvimento, da complexidade e multiplicidade das novas funções que lhe incumbem no mundo moderno, principalmente no campo do direito industrial, do direito da economia e do direito corporativo”.

Vale reproduzir, tanto quanto possível em seus termos originais, o depoimento insuspeito do continuador de Alberto Torres. “Este movimento de caráter descentralizador, e que é geral no mundo civilizado, revela-se principalmente no sentido de uma descentralização funcional (ou ‘funcionalista’, como quer Duguit) das atividades do Estado, paralela, ou mais exatamente, contraposta à descentralização territorial. Descentralização ‘autárquica’, como chamam os italianos, ou descentralização ‘por serviço’, como chamam os franceses, ela é, sem dúvida, o aspecto mais ressaltante das novas organizações administrativas. Pode-se dizer que esta descentralização caracteriza a estrutura do Estado Moderno. Revista-se da forma institucional, ou da forma sindicalista, ou da forma corporativa, o seu objetivo, como observa La Pradelle, é desembaraçar o Estado de todas aquelas funções, de que ele se incumbe modernamente, mas que não estão de acordo com as suas funções tradicionais. Geny vê, neste fato, o desenvolvimento do princípio da colaboração dos particulares com o Estado, colaboração imposta pelas condições mesmas da vida moderna e pelo abandono da concepção própria à doutrina democrático-individualista, do antagonismo entre a Sociedade e o Estado”.

Esclarece, entretanto, Oliveira Vianna que este desenvolvimento da descentralização autárquica ou institucional não é devido exclusivamente a esta crescente complexidade das funções do Estado Moderno, nem à sua tendência universalista; “resulta também da ação de um outro fenômeno, peculiar ao Estado Moderno, que é a reação contra a descentralização geográfica — contra as ‘autarquias territoriais’. Acrescentando mais, que tal regime de ‘autarquias institucionais’ é precisamente o regime que atende ao mesmo tempo centralizadora e descentralizadora, do Estado Moderno, cada vez mais incompatível com as autarquias territoriais e cada vez mais evoluindo no sentido das autarquias funcionais e corporativas”.

Nem caberia agora, após os argumentos aduzidos, a suposição de que um regime desses, federalista corporativo, de bases em corporações de poderes legislativos, executivos e judiciários seja incompatível com a nossa Constituição atual. E ainda nesse ponto elucida-nos Oliveira Vianna: “pela natureza mesma dos fins para que foram instituídas e das causas lhes deram origem, nestas organizações administrativas, do tipo paraestatal e de base corporativa, a concentração era inevitável e necessária. Era uma conquista aquela ‘lógica da função’ a que alude Hauriou, pela qual toda e qualquer instituição política ou administrativa tende sempre a ampliar a sua competência até o limite máximo do que é necessário a plena realização da sua função ou dos seus fins”. Peca pela base, portanto, o argumento de que tal regime é inconstitucional pela razão simples dos que a Constituição institui e princípio de separação dos poderes como dogma fundamental e intangível. Bastaria para refutá-lo, quando mais não fosse, o já famoso exemplo dos Estados Unidos, irrepreensivelmente organizados sob os postulados democráticos e liberais… Nesse país, como lembra o ensaísta do “papel das corporações administrativas no Estado Moderno”, [1] grande parte da vida social e econômica é controlada e dirigida por commissions, boards, bureaus, de regra tipicamente corporativos, que monopolizam quase a administração dos serviços públicos, seguros privados, zoneamento urbano, indenização de acidentes, conflitos de trabalho, individuais ou coletivos, e outras tantas atividades. E, na reforma de serviços públicos, projetada pelo presidente na Nação americana, já se esboça um rudimento de Ministério das Corporações, para coordenar e concentrar a ação dessa multiplicidade de organismos…

No Brasil também, frisemos, não são poucos casos de órgãos corporativos, cuja criação se deve ao próprio governo. O Departamento Nacional do Café, o Instituto do Açúcar, são, de última análise, um exemplo forte de que a reforma corporativa cabe perfeitamente dentro da Constituição Federal. Chega-se assim, à conclusão de que essas e outras organizações de tipo corporativo (embora o Departamento do Café e o Instituto do Açúcar representam tipos imperfeitos), nascem naturalmente da própria vida social e econômica, de suas exigências vitais, à revelia da boa ou má intenção dos governantes. O que acontece, no momento atual, em todo o mundo, é uma integração dessas organizações no mecanismo do Estado, de que são colaboradores e funcionários, já muito antes da oficialização constitucional…

Daí a conclusão: o Integralismo, por sua doutrina corporativa, só ele poderá realizar efetivamente o verdadeiro regime federativo. É a lição dos fatos, aqui e em toda parte.

Ottolmy da Costa Strauch
“A Offensiva”, 17 de outubro de 1937.

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Nota:

[1] O autor refere-se ao ensaio O papel das corporações administrativas no Estado, publicado no Jornal do Commercio em 29 de agosto de 1937. O ensaio foi depois reproduzido em Problemas de Direito Corporativo, de 1938.