Panorama geral

Vendo as chaminés que se elevam ao céu cinzento dos bairros industriais, é imenso o nosso orgulho. Julgamos-nos senhores de uma riqueza incalculável, de bases sólidas, com enorme capacidade de desenvolvimento.

Nesta época na qual todas as Nações, por mais que deficientes sejam de recursos, não poupam esforços no sentido de criar uma indústria própria, é justo que nos orgulhemos do parque industrial brasileiro, de tudo o que já nos foi dado, e do muito que ainda é possível levar a termo.

Mas o nosso entusiasmo não deve chegar ao extremo de só ver as coisas belas, sedutoras e esplêndidas. Toda essa nossa magnificência fabril apresenta pontos fracos, vulneráveis, perigosamente vulneráveis.

Miguel Reale

O economista que vem a São Paulo, por exemplo, para examinar a nossa situação industrial, fica perplexo diante da verificação destes fatos que não podem deixar de levantar dúvidas e apreensões nos espíritos:

  1. Quase todas as nossas grandes indústrias, mesmo a que maquinofaturam matérias-primas brasileiras, tiram grande benefício das barreiras alfandegárias, indicando que em muitos casos, o protecionismo não visa apenas ao fortalecimento da indústria em nosso país, a fim de nos garantir uma certa independência em relação às potências estrangeiras que cada vez mais se deixam guiar pelo ideal autarquias econômicas;

  2. Algumas indústrias, surgidas à sombra das limitações alfandegárias, já estão em condições de competir livremente no mercado com similaridades estrangeiras. Agarram-se, porém, ao protecionismo que se tornou nesse caso, particularista e injustificável, de maneira a garantir, sem esforços, uma exagerada margem de lucros;

  3. Em geral, por mais que tolamente se queira dizer o contrário, o nosso parque industrial é notável em extensão e especialmente em percentagem de lucro, mas não apresenta senão medíocre intensidade produtiva em virtude do deplorável aparelhamento técnico. Em comparação com as indústrias europeias e americanas do norte, é evidente a nossa pobreza técnica e não menos irrisórias as condições de nossa organização quase que totalmente empírica, desarticulada, desracionalizada;

  4. Por fim, a par dos consideráveis dividendos, nota-se a pequenez dos salários. Em pouquíssimos lugares do mundo, o pagamento do trabalhador apresenta tão gritante contraste em percentagem dos lucros. A mão-de-obra em São Paulo e no Brasil é barata, é baratíssima, e a crescente população da metrópole tende a reduzir ainda mais os salários.

A simples enumeração desses fatos nos leva a tirar a seguinte conclusão: A indústria brasileira, e a paulista em particular, apesar de suas deficiências de organização e elemento técnicos insignificantes, consegue competir com as indústrias alienígenas tão-somente em virtude em três situações precárias:

a) o protecionismo alfandegário, que não é condenável como medida de auxílio a indústrias nascentes, mas que se torna um mal quando se transforma em meio “normal” de sustentar situações realmente deficitárias;

b) a má redistribuição dada aos trabalhadores, tanto aos técnicos como as operários sem categoria;

c) o baixo nível de nosso câmbio.

Ausência de orientação

Para sairmos dessa situação, impõe-se em primeiro lugar a fixação de um plano racionalizador de nossas atividades industriais.

Quando fui ao Norte e ao Sul do país em viagem de propaganda integralista, tive oportunidade de visitar várias fábricas dos mais diferentes produtos, colhendo informações sobre o índice, o nível dos salários e os mercados consumidores.

Uma das coisas mais curiosas que pude notar foi a falta de distribuição dos mercados entre os centros produtores, a absoluta falta de lógica nas linhas de escoamento de mercadorias.

Em lojas de Maceió e de Aracaju encontram-se tecidos paulistas em quantidade. Pois bem, as fábricas alagoanas de Penedo exportam suas mercadorias também para as províncias do Sul, inclusive São Paulo! E são produtos idênticos!

Como explicar esse fato a não ser como exemplo característico da falta de racionalização, até mesmo dessa racionalização primária que cria as zonas de escoamento em função da facilidade e da pouca despesa de transporte? Que representa tal fato senão uma visível falta de equilíbrio nos preços?

A indústria brasileira surgiu sem orientação, desarticulada, obedecendo tão-somente aos cálculos pessoais de cada capitalista. O Estado limitou-se a proteger alfandegariamente. Retraiu-se em seguida, deixando o campo livre a todos os empreendedores e a todas as aventuras. Daí a despolarização do nosso parque industrial. A criação de indústrias complementares antes das indústrias básicas. A disparidade dos preços criando “linhas de escoamento de mercadorias” que se cruzam e se repelem em lugar de se completarem. As indústrias parasitárias, sem esperanças nem mesmo de aperfeiçoamento técnico capaz de compensar a importação das matérias-primas.

Ainda não houve no Brasil uma política de orientação industrial. Por enquanto só tivemos medidas isoladas e desconexas de protecionismo aduaneiro, que nunca foi entendido, infelizmente, como capítulo inicial de um plano geral de industrialização, mas sim como uma simples providência simples.

O problema industrial brasileiro tem tal relevância que urge criar as situações indispensáveis ao seu mais rápido e orgânico desenvolvimento, dando-lhe bases mais sólidas, prevendo as funestas consequências do atual estado das coisas.

De início, lembremos que não é possível resolver o problema da indústria a não ser no sistema global de todas as nossas atividades econômicas. Seccioná-lo da agricultura e do comércio, seria cair em um erro gravíssimo.

Devido à consideração unilateral do fenômeno industrial, existe hoje em São Paulo um inegável antagonismo entre industriais e lavradores.

Desenvolveram-se duas grandes forças na terra paulista, de maneira quase que correspondente, e ainda se encontram na fase ascensional, apesar da crise cafeeira.

O valor total da produção industrial paulista foi, no período 1934/35, de 2.600.000:000$000, e, em igual período, o valor da produção agrícola chegou a 2.525.344:596$500.

Como se vê, equivalem-se essas forças de tal sorte que a mais agrícola das unidades da Federação é também a mais industrial. O que nos cumpre fazer é assegurar essa correspondência de valores produtivos, dando à economia brasileira a saúde que resulta sempre de um harmônico desdobramento das fontes de riqueza.

A missão do Estado

Pois bem, não obstante esse equilíbrio de forças, o poder público tem tido orientação tão falha que, toda vez que os órgãos administrativos tentam tomar medidas especiais de estímulo ou proteção, o dualismo agricultura-indústria se transforma em franco antagonismo. E a luta revela-se com toda sua violência quando se vem tratar do protecionismo alfandegário, que a lavoura combate violentamente, talvez na esperança de que possa o “livre-cambismo” produzir a suspensão dos obstáculos postos no estrangeiro à entrada de nossos produtos agrícolas.

Esquece-se que uma atividade depende da outra. Que o progresso de uma condiciona o progresso da outra. Ao invés de apreciarem os fenômenos no conjunto do todo nacional, perdem-se os interessados em divergências imediatas, levados pelo mais anacrônico dos individualismos.

Diante de tais fatos, não há como negar a imprescindível necessidade de uma interferência estatal que venha auxiliar e propulsionar as capacidades dos indivíduos e dos grupos, supervisionado os problemas e traçando uma diretriz harmonizadora. Interferência do Estado que deverá, porém, ser natural consequência do estudo das questões pelos próprios técnicos interessados através dos órgãos representativos de sua classe.

Uma prova da necessidade dessa solução, tivemos com o Inquérito Industrial mandado organizar pelo Conselho Federal do Comércio Exterior, a fim de obter das associações industriais “o maior número de sugestões para um exame prático das possibilidades da indústria brasileira para a sua maior expansão, tanto no consumo interno, quanto na exportação de seus produtos para o exterior”.

Sente-se, por toda sua parte, mesmo nos setores mais “liberais”, que nada se poderá fazer sem uma estreita colaboração entre o governo e os grupos industriais.

A inércia e o descanso do liberalismo em matéria econômica deixaram-nos nesta dolorosa contingência de estarmos ainda fazendo inquéritos oficiais para saber “até que ponto já estão preparadas as nossas indústrias para maior expansão no consumo interno e conquista dos mercados estrangeiros, antecipando, igualmente, a notícia da melhoria próxima de seu produto e do aparelhamento comercial para sua propaganda e consequente venda”.

Não há dúvida que mal estamos saindo da fase de “academismo econômico”.

O Estado terá fatalmente que se colocar em sua posição natural de orientador e guia da produção nacional, restabelecendo os equilíbrios que a lei da oferta e da procura perturba devido à ganância infinita dos homens.

Livre-cambismo e protecionismo

Foi o “academismo econômico” que criou no Brasil uma corrente tão forte contra a nossa expansão industrial.

Para os cantores do país essencialmente agrícola, devíamos ter continuado a ser uma Nação fornecedora de matérias-primas, sempre à mercê das altas e baixas dos centros industriais estrangeiros.

As teses genéricas são de valor bastante relativo nos domínios da economia e das finanças. Procurar leis uniformes para as múltiplas questões relacionadas com a produção de riquezas, é arriscar perder de vista a realidade. Em um campo onde os fenômenos apresentam facetas próprias e inconfundíveis, é perigoso traçar quadros uniformes, achando para o conjunto dos fatos uma única solução.

É admissível que no gabinete se concatenem os silogismos, apreciando as vantagens do “livre cambismo” sobre o “protecionismo”, distiguindo as recíprocas deficiências.

Mas essas indagações, de inegável valor teórico, devem se submeter sempre às correções ditadas pelas contingências históricas e as especiais circunstâncias mesológicas.

Não compreendo como se possa ser dogmaticamente livre-cambista, em todos os tempos e em todos os lugares. Da mesma forma, parece-me injustificável o entusiasmo permanente por todas as medidas que objetivem proteger economias nacionais mediante altas tarifas alfandegárias, ou calculadas depreciações do câmbio.

Penso que as tradicionais correntes dos “livre-cambistas” e dos “protecionistas”, encerram ensinamentos utilizáveis de acordo com o variável estado dos fatos econômicos particulares. De tal sorte que, protecionista em um ponto, pode um país ser livre-cambista em outro, ou então — o que é muitas vezes aconselhável — estabelecer condições de reciprocidade, harmonizando interesses nacionais e internacionais.

Não condeno, por conseguinte, o protecionismo que ampara a indústria brasileira em geral. Compreendo que foi necessária a intervenção do Estado a fim de possibilitar o aparecimento das empresas incumbidas de elaborar os inesgotáveis bens de nossa terra.

Na América do Norte, como é sabido, a indústria surgiu e prosperou de maneira admirável, exatamente porque seus primeiros passos se processaram a salvo da esmagadora concorrência estrangeira, já provida de maiores recursos de técnica e de organização. A doutrina de List consulta, de maneira claríssima, a necessidade, que sentem os países jovens que possuem riquezas a explorar, e que não podem continuar sempre no papel de “fornecedores de matéria-prima”.

O repúdio do “livre-cambismo” por parte dos países europeus, depois da segunda metade do século passado, teve um significado de reação e de defesa contra invasão do industrialismo britânico, cujo interese — era natural — se harmonizava totalmente com os princípios do comércio sem entraves aduaneiros.

Como bem foi notado por List, a doutrina da Escola de Manchester, pregando a absoluta liberdade mercantil, era nacionalista para a Inglaterra e antinacionalista em relação às nações continentais que se viam impossibilitadas de lançar as bases da própria indústria.

Por conseguinte, a intervenção do Estado brasileiro, auxiliando os industriais patrícios, foi um bem. Se erros houve (e quem quererá negá-los?) não foram propriamente do “protecionismo”, mas da maneira leviana pela qual a proteção foi feita.

Com o aparecimento da indústria nacional, muitíssimas riquezas passaram a ser aproveitadas. Elevou-se o nosso potencial econômico, tornamos-nos, de certa forma, independentes. Deixamos de ser “essencialmente agrícolas” para começarmos a compreender que possuímos condições e meios de um país tanto industrial como agrícola. Nossa atividade deve se desenvolver em todos os sentidos, completando-se como se completam os recursos das várias regiões do Brasil.

Isto posto, nenhuma paixão “escolástica” me move a fazer reparos sobre a indústria brasileira, que como disse, está se valendo do protecionismo e baixos salários, preenchendo com esses meios as falhas de organização e de aparelhamento técnico.

Vencemos, com certo desafogo, este longo período de crise mundial, precisamente porque possuímos um parque industrial próprio, o que deu incremento ao nosso comércio interno, pondo, portanto, mais em contato as unidades de Federação.

Não é exagero dizer que da estabilidade de nossas indústrias, depende, em grande parte, a unidade nacional. Com efeito, a saúde de nossa economia só poderá ser uma consequência de uma perfeita consonância entre a nossa agricultura e a nossa indústria.

O que importa é que o protecionismo não seja usado como instrumento de classe ou de grupos interessados, sem plano geral, sem cautela, sem flexibilidade. A proteção tem que ser provisória. Quando se eterniza, deixa de beneficiar à Nação, para ser o simples reflexo das ganâncias de uma casta.

Mussolini, que sempre olha os problemas econômicos com realismo e serenidade, diz muito bem, que o perigo do protecionismo está em criar uma situação de preguiça, suprimindo o estímulo da concorrência que é tão necessário ao progresso técnico.

“A proteção”, escreve ele, “não deve ser acolchoado que convida ao fácil repouso; deve ser o instrumento com o qual se permite que uma certa indústria forme os seus ossos, desenvolva e progrida, para depois, mesmo em condições difíceis, sustentar a concorrência dos mercados mundiais. Por isso não devemos querer nem protecionismo absoluto que nos conduza a uma economia fechada, com consequências deploráveis e fatais; nem tampouco liberalismo absoluto, que abrindo as nossas fronteiras a todos os produtos de além-mar, nos manteria, pelo menos durante um longo período, em condições de inferioridade absoluta e de miséria”.

A lição serve tanto para a Itália com para o Brasil.

Distinções oportunas

Os defensores do livre-cambismo — examinando as nossas tarifas aduaneiras em confronto com com a curva de nossa balança comercial — encontraram farta messe para reafirmar a verdade de suas premissas e condenar o intervencionismo tutelador do Estado.

Já disse que não concordo com tal negação radical, e observei a necessidade de se distinguir o protecionismo prudente e planificado (indispensável ao desenvolvimento industrial brasileiro) do protecionismo que não foi criado segundo os imperativos da economia nacional.

Em resumo, o que importa combater não é o protecionismo em si, mas o “abuso” que dele se fez.

Com efeito, analisando a crescente tabela de nossas taxas aduaneiras, fácil é verificar que estas não tiveram uma paralela correspondência no progresso de nosso parque industrial.

Daí o aparecimento de indústrias inteiramentes fictícias, elaborando com máquinas estrangeiras, matérias-primas que também nos chegam de fora e sem possibilidade de compensadores aperfeiçoamentos técnicos que as justifiquem. Qual a vantagem para o povo, diante de tal estado de coisas? Nenhum. Aumentaram os lucros de alguns magnatas, mas o encarecimento dos produtos — infelizmente de pior qualidade — veio pesar no já diminuto orçamento dos membros do operariado e da classe média.

É inegável o desequilíbrio entre o pequeno crescimento de nossa indústria e o desmesurado aumento da proteção, ao mesmo tempo que se verificava o declínio alarmante de nossa exportação e importação, o que levou a muitos concluir pelo nenhum benefício para a economia interna do país.

Abandonada esta última posição extremada e pessimista, coloquemo-nos em situação intermediária de equilíbrio: tratemos de estudar cada caso particular, analisemos a posição especial de cada mercadoria ou grupo de mercadorias, e orientemos a nossa legislação no sentido da revisão orgânica e planificada das atuais tarifas.

Algumas indústrias exigem as tarifas vigentes; outras já podem prescindir totalmente de proteção, por se acharem em condição de competir livremente no mercado, com benefício para o povo e aperfeiçoamento do produto; outros ainda permitem fortes reduções nas taxas alfandegárias correspondentes.

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Quanto as indústrias fictícias em má hora aparecidas, é preciso refletir com menos paixão.

O mal existe, não há dúvida. Mas, no campo econômico, quem pretende destruir “ex-abrupto” um erro existente, provoca a calamidade de males maiores.

Suprimir, de uma hora para a outra, certas barreiras de proteção, significaria provocar imediatamente o fechamento de muitas fábricas. Milhares de operários repentinamente no desemprego. Centenas de contos empatados que se paralisariam. Relações econômicas irremediavelmente partidas. E, diante da invasão do produto estrangeiro mais barato e melhor, teríamos um golpe profundo no comércio, com estoques inutilizados, atravacando o armazéns e prateleiras. O quadro não seria tão delicioso como o pintam os poetas do dogmatismo livre-cambista…

De mais a mais, é preciso esclarecer bem este ponto das indústrias fictícias.

Há no Brasil uma opinião generalizada até mesmo entre economistas considerado “fictícia” toda e qualquer indústria que trabalhe matérias-primas importadas.

De acordo com tal modo de ver, fictícias seriam, por exemplo, quase todas as indústrias inglesas, belgas e italianas. Não basta a simples verificação da proveniência da matéria-prima, para se julgar e condenar uma indústria. Os fatores a considerar, como sempre, são múltiplos. Há todo um estudo, por exemplo, a se fazer sobre a tributação alfandegária que recai sobre as matérias-primas, produzindo elevação do preço dos objetos aqui fabricados, por sua vez protegidos pelas tarifas que oneram objetos análogos de fabricação estrangeira.

Nesta questão de legislação alfandegária, impõe-se um estudo preliminar, considerado-se cada caso singularmente, enquadrando-o depois no sistema total de importação e exportação, sístole e diástole da economia de um povo.

Como foi judicialmente observado pelo Sr. F. L. Vilela, “a proteção às nossas indústrias com elevação das tarifas alfandegárias dos produtos estrangeiros similares é o que encarece a vida e traz a revolta contra a indústria nacional. O acertado seria facilitar às nossas indústrias os meios possíveis de baratear a sua produção, de modo que os seus produtos se tornassem os preferidos, devido ao seu baixo preço”. [1] Ora, isto se consegue baixando os direitos sobre as matérias-primas, de sorte a permitir uma industrialização nacional menos onerosa para os consumidores, sem provocar reações naturais nos mercados externos.

Outro ponto interessante que é tratado pelo Sr. F. L Vilela é o da necessária especialização das regiões brasileiras no campo de atividades industriais. Apesar de não concordarmos plenamente com suas observações quanto ao papel dos fornecedores da matéria-prima que, no seu entender, deveriam se contentar com a simples exportação, achamos digna de estudo a sua tese.

Em relação ao problema nacional, é indiscutível que a industrialização do Brasil, sem um plano comum harmonizador, pode constituir um perigo para a nossa unidade industrial.

“A vastidão do nosso território e a sua consequente variedade de clima”, observa o articulista, “e, por conseguinte, a sua variedade do homem, nos dá a possibilidade de executar a boa política econômica, trazendo para o campo nacional, o que seria de desejar ao internacional, especializando-se as zonas, não se permitindo a disseminação pelo país das mesmas atividades, industriais, agrícolas e pecuárias, de modo a que o nosso próprio movimento interno de trocas se torne a pujante força capaz de nos libertar de crises, superproduções e lutas regionais, para que em nada nos atinja a luta internacional”.

Considerado essa questão de importância relevantíssima, básica em todo e qualquer estudo sobre as indústrias brasileiras. Não basta pregar a industrialização. É preciso que a industrialização se pregue como um capítulo da economia e da política nacionais, de maneira a evitar choques entre regiões e embates de interesses particulares, mediante “a localização das atividades seguindo um plano de intercâmbio equilibrado, atendendo às condições geográficas e humanas”, para o que “é imprescindível uma visão totalitária, anterior a qualquer medida de direção administrativa, de modo que cada passo da marcha do erguimento nacional, seja dado em direção exata da meta a atingir”. [2]

O que é necessário é que o governo se trace um programa de ação e o inicie por partes, sem precipitação, mas também sem concessões ilegítimas.

Fixado, por exemplo, um determinado prazo, teriam certas indústrias que ir se adaptando a um decréscimo progressivo das tarifas, à sombra das quais surgiram e ainda se mantêm. A situação voltaria ao normal, gradativamente, sem trambolhões, nem surpresas dolorosas.

Por outro lado, outras indústrias deveriam ir surgindo distribuídas racionalmente pelo território nacional, obedecendo a fatores múltiplos e não apenas à ganância do produtor.

É claro que nada se poderá fazer nesse sentido enquanto perdurar o atual regime econômico que faz do capital o princípio e o fim da economia.

Somente nos quadros da economia corporativista, o interesse individual se porá em harmonia com o interesse coletivo, passando o capital a ser empregado de acordo com as exigências totais da sociedade e as particulares do capitalista.

Hoje em dia o capital pode ser utilizando onde, como, quando e quanto quer o seu proprietário, que é livre de manejá-lo ao seu bel-prazer, sejam quais forem as consequências dos seus atos para com a produção nacional.

No Estado Integralista, ao contrário, as indústrias terão que obedecer aos planos traçados pelos próprios industriais reunidos em suas instituições de classe, planos esses, em seguida, discutidos e aprovados pelas demais corporações não-industriais. Em suma, a totalidade das forças produtoras estará organizada de maneira a estudar o desenvolvimento harmônico das atividades econômicas, exercendo cada setor da produção um natural controle sobre os restantes. [3]

Diante de uma resolução apresentada por uma corporação, as outras terão o direito de intervir em virtude de seus interesses conexos e especialmente pelo fato de representarem, em relação a essa corporação, os interesses dos consumidores. Com efeito, cada produtor é consumidor relativamente a outro produtor. Assim sendo, a ordem na produção implica uma ordem no consumo.

A política dos baixos salários

Além das vantagens que hoje lhe advêm do câmbio ínfimo e do protecionismo das barreiras alfandegárias, a indústria brasileira tem crescido e prosperado à custa de salários que verdadeiramente não correspondem ao esforço que os trabalhadores dispendem na produção.

A percentagem reservada ao pagamento de mão de obra é diminuta. Não chega, em certos casos, a 10% dos lucros obtidos por um sócio secundário…

Conforme as regiões do país, o salário médio varia de dois a sete mil réis. Atendendo ao alto custo de vida, ao encarecimento dos gêneros de primeira necessidade, fácil é concluir pela precariedade da situação do proletariado nacional.

Mas toda a grandeza e todo o esplendor de nossos parques industriais, não estão levantados — por esse mesmo motivo — sobre uma base que ofereça certeza da estabilidade e da desejável duração.

Quando rebentou a crise cafeeira, e deu-se a queda de nosso câmbio, houve um surto industrial, reativaram-se as atividades febris. Paralisada a imigração que durante tantos anos fornecera legiões de produtores, começou a se verificar mais acentuado afluxo dos trabalhadores do campo para as grandes Capitais. Abandonaram-se as fazendas com seus milhões de cafeeiros semi-sacrificados. As fábricas, oferecendo pelo menos a sedução de um salário certo, atraíram milhares de homens válidos, cuja situação no campo se tornara por demais difícil e instável, sem haver esperanças de rápido reajustamento nos valores agrícolas.

Em virtude da crise agrícola, os salários reais sofreram forte redução. A grande oferta de mão-de-obra permitiu que se mantivesse sem alteração o índice do salário, não obstante o acréscimo relevante do custo médio de vida.

Os nossos industriais habituaram-ae, assim, a um sistema de salários baixos, e acham cômodo taxar de “comunismo” e indicar à execração pública, tudo quanto se manifeste contrariamente a tal orientação desumana e injustificável até mesmo do ponto de vista do interesse particular deles.

Não querem ver e reconhecer o duplo perigo que se contém nesse estado de coisas.

Em primeiro lugar, nada há mais aleatório que uma indústria baseada em uma política de salários insuficientes. Se ontem a lei da oferta e da procura forçou uma baixa na retribuição do trabalhador, amanhã é possível que essa mesma lei conduza a uma elevação geral e desmedida dos salários, a ponto de tornar problemáticos os lucros da produção.

Isto de suprir deficiência técnica com pagamentos ínfimos, constitui um absurdo de tanta evidência, que custa crer que nele ainda não tenham atentado demoramente os industriais patrícios.

Mais tarde ou mais cedo, ao campo voltarão milhares de homens que vieram à cidade por falta de ocupação estável. A carência dos braços para a nascente lavoura algodoeira, já vai oferecendo melhores possibilidades aos colonos, aos sitiantes, aos meeiros, aos simples empregados sem categoria especial.

O problema é de suma gravidade, de consequências relevantes.

Dentro de pouco tempo, estarão as indústrias às voltas com a falta de braços. E os operários saberão valorizar seu trabalho, impondo, como é justo, um pagamento consentâneo com a parte de sua atividade criadora. É até possível que os salários subam de forma a estancar certas indústrias que não se têm preocupado com a organização racionalizada nem com o aparelhamento técnico exigidos no mundo moderno, continuando — como no século passado — a viver do que Marx chamou “mais-valia”, o que quer dizer, mediante a política retrógrada de aumentar os lucros à custa dos que cooperam na produção das riquezas.

Impõe-se, por conseguinte, à indústria brasileira a providência no sentido de se munir de meios modernos, eficientes, enquadrando-se organicamente na economia nacional, reconhecendo a cada um o que é seu.

A ambição desmedida, o desejo de fazer tudo por si, a aspiração tola de perpetuar insustentável regime de salários, poderá perder a indústria em nossa terra.

Em segundo lugar, a falta de compreensão da necessidade de respeitar os direitos obreiros, muito além dos formalismos e das aparências legais, abre as portas à propaganda comunista.

O que é preciso é que o industrial não seja, inconscientemente, o verdadeiro e único criador de revoltados, de revolucionários intransigentes, de bolchevistas iludidos em um sonho paradisíaco de final libertação.

Felizmente, parece que uma nova mentalidade vai se formando. Alguns industriais já estão se compenetrando da missão que lhes incumbe e — mais do que isso — já estão percebendo de que lado se colocaram verdadeiramente os seus interesses. Até que enfim reconhecem que o mal do operariado mais tarde ou mais cedo é mal do patrão.

Nada melhor, como índice dessa mudança de atitude, do que lembrar as conclusões de um relatório apresentado pelos diretores de umas das poderosas organizações fabris de São Paulo, na assembleia anual de seus acionistas. Reproduzimos do “Diário Oficial” do Estado, de 17 de abril do corrente ano, os seguintes trechos mais expressivos:

“Ao encarecimento das matérias-primas sobreveio, acentuando-se nestes últimos tempos, a alta dos gêneros de primeira necessidade.

Este novo fator vem agravar a situação, pois a classe consumidora pobre, obrigada a pagar preços elevadíssimos para os gêneros alimentícios, não está como outrora em condições de suportar despesas de artigos de necessidade secundária, tais como os tecidos para indumentária, serviços domésticos, etc. Compelida a aguardar melhor oportunidade, concorre ela mesma à escassez do movimento na rotina comercial e industrial.

Ao nosso operário industrial ou rural também não falta o espírito de economia inato naqueles outros povos, mas os salários vigentes que lhe remuneram o trabalho não permitem tal possibilidade, abaixo como estão do padrão da vida atual.

Dando ao trabalhador maiores meios da aquisição, concorrerá ele mesmo para o aumento do consumo e escoo das produções, pois ninguém se submete a privações senão quando as suas necessidades econômicas o impõem.

Achamos, portanto, que para eliminar os inconvenientes que a miúdo tanto transtorno aportam nos meios comerciais e industriais do País, se deveria elevar o nível de salários em geral”.

Há, porém, nesse relatório algo mais que um simples reconhecimento da interdependência dos interesses trabalhistas e patronais. Se os proprietários de fábrica se tivessem limitado a dizer essas coisas, estariam apenas remoendo os princípios do “fordismo” sobre o qual não é mais lícito tecer panegíricos, após os dramas da crise americana.

Felizmente, talvez sem atentar bem às consequências de ordens gerais que legitimam, os relatores continuam nestes termos:

“Somente com um salário-padrão adequado às necessidades atuais, obrigatório por lei em todo País, poder-se-á ver concretizada a solução de tão sério e delicado assunto, pois qualquer iniciativa particular em um ou outro Estado da Nação, por mais que faça, jamais conseguiria êxito em questão de interesse coletivo e tão complexo como esse. Ocorre pôr em prática desde logo o salário mínimo para cada espécie de trabalho, coisa que, como dissemos, compete ao governo. Naturalmente, surgirão discussões entre empregadores de trabalho, autoridades e sindicatos operários, mas chegar-se-á finalmente a um resultado prático”.

O que destacamos e frisamos não é confissão da necessidade do salário mínimo, mas o reconhecimento expresso da impotência da iniciativa particular na matéria. Estão vendo, os leitores, que são os próprios industriais que vão concordando com a amplitude da ação dos governos relativamente às questões de caráter social, a fim de ordenar a produção e estabelecer uma distribuição equitativa de recompensa ao esforço de cada elemento da economia nacional. [4]

Tudo coopera, de maneira lógica, para o advento do Corporativismo.

Conclusão

Essas notas que acabamos de fazer à margem do problema industrial, sabemos perfeitamente que não tocam o assunto em todos os pontos. Quisemos apenas indicar os mais importantes, ou melhor dizer, os mais diretamente ligados à atuação do estado.

Restar-nos-ia ainda tratar, entre outros, dos problemas do Crédito e do Transporte, mas são estas questões já amplamente debatidas pelos técnicos. [5]

Limitamos-nos a esclarecer que o Brasil pode perfeitamente receber capitais estrangeiros para serem invertidos na produção nacional. Mas o governo tem dever de fiscalizar a entrada e aplicação desses capitais para que eles não se transformem em instrumentos de domínio estrangeiro; tem a obrigação de impedir que aqui se estabeleçam capitalistas unicamente com o fito de manobrar recursos nossos sem nenhum proveito para a terra, antes com prejuízos formidáveis; tem o dever de não cair na armadilha dos empréstimos internacionais que transformaram nossa pátria em colônia de banqueiros; tem a obrigação de salvaguardar a soberania nacional, livrando-a de certos compromissos financeiros que a comprometem quando não a aniquilam completamente.

Além do mais o Estado deve cuidar do auxílio direto das indústrias promissoras, incrementando o conhecimento de nossas imensas riquezas, criando escolas e faculdades técnicas, transformando a organização bancária em verdadeiro “coração” da economia, abastecendo os produtores nacionais de recursos indispensáveis.

O que importa — e é o que este estudo deixa em evidência — é que o problema industrial seja posto no quadro geral da economia brasileira, integrado no sistema nacional de nossas atividades produtoras, sem os perigos incalculáveis de um desenvolvimento anárquico e unilateral que poderia vir a ser o caminho do aniquilamento do Estado e o instrumento certo da desagregação da pátria.

Miguel Reale
“Atualidades Brasileiras”, 1936.

Notas

[1] V. a revista Panorama, nº 13, pág. 23 e seg.

[2] loc. cit. pág. 27.

[3] Nota do Site. Vide o artigo O Corporativismo Integralista, do autor.

[4] Nota do Site. Vide, no mesmo livro, o artigo Sobre a Legislação Social, do autor.

[5] Nota do Site. Vide, no livro O Capitalismo Internacional, do autor, o capítulo Trabalho, Crédito e Autarquia, sobre o crédito.