Recebi uma carta do velho amigo Antônio Américo da Silva, tabelião em São Bento do Sapucaí, a terra do meu nascimento, pedindo a minha interferência no sentido de pleitear junto a quem de direito em defesa da integridade territorial daquele município, já várias vezes ferida pelo totalitarismo da nossa pseudo-democracia, desde 1935.

A história da minha terra natal nestas últimas décadas constitui uma página eloquentíssima do desrespeito absoluto com que no Brasil os homens públicos tratam a autonomia dos municípios.

Os municípios em nosso país são escravos do Estado. Na discriminação das rendas, ficam-lhes as migalhas, devorando os cofres estaduais e federais quase todos os impostos, de sorte a obrigar os aglomerados locais a andarem de mão estendida, como mendigos, a esmolar favores orçamentários da corrente política dominante e as boas graças do Governador mediante a compra e venda da consciência política.

Plínio Salgado

Fala-se em unidade política nacional, fala-se em partidos nacionais, com o cinismo com que ladrões falam em honestidade; mas essa unidade nacional que enche a boca dos teóricos, dos homens de gabinete, que nunca saíram do asfalto das avenidas, é ferida de morte mediante o assalto à liberdade dos municípios com ameaças ou práticas efetivas em detrimento dos municípios que não se subordinem aos caprichos dos totalitários desta República falsamente democrática.

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Foi observando essa prepotência exercida contra os municípios que, aos 22 anos de idade, fui um dos fundadores do Partido Municipalista no Estado de São Paulo, em cujo programa inscrevi como base das nossas atividades políticas, a reação municipal contra a tirania estadual. Eu reivindicava para os municípios o direito de elegerem, sem interferência externa de poderosos, suas Câmaras Municipais e seus Prefeitos, pois notava que os habitantes locais nunca usufruíram essa liberdade de escolha, uma vez que as eleições eram comandadas de fora, através de um delegado de polícia, praças do destacamento policial, demissões e remoções de funcionários. O Integralismo, que mais tarde lancei como doutrina política da Unidade Nacional, pode-se dizer que teve uma de suas raízes naquela minha experiência da juventude.

De fato, dessas observações nasceu muito viva a minha curiosidade de estudioso; e quando li Oliveira Vianna e Alberto Torres, que tão claramente me evidenciaram nas suas obras o contraste entre as nossas instituições e as nossas realidades, a incongruência dos teóricos, a incapacidade prática dos nossos homens públicos ao legislar nas bibliotecas para uma Nação que vive ao ar livre da verdade social e histórica e das necessidades econômicas e administrativas, pude compreender sem esforço o que me diziam aqueles grandes espíritos.

O problema da Unidade Nacional, entretanto, só atingiu, no meu espírito, a solução completa, no momento em que, depois das leituras de Farias Brito, em cujas páginas me libertei da influência do evolucionismo de Spencer e do monismo de Haeckel fortemente agravados pela literatura naturalista em voga, fui gradativamente caminhando na senda do espiritualismo até regressar à base católica, em que meu espírito se formara desde o alvorecer da infância. Tinha, finalmente, a minha inquietação, atingido as próprias fontes do tradicionalismo brasileiro, o marco primordial da nossa História, que me serviu de ponto de partida para a construção de uma doutrina política essencial e estruturalmente constituída da mais pura brasilidade. 

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O princípio cristão da liberdade da “pessoa humana” foi para mim a pedra angular da concepção do Estado. Iluminou meridianamente os conceitos de cada um dos elementos que compõem a Nação. O que eu tinha visto, apenas intuitivamente, no concernente ao Município, nas minhas iniciais lutas políticas, e em relação à Pátria, no ardor com que me inscrevi voluntário atendendo à primeira lei do Sorteio Militar, sob a atmosfera de entusiasmo que Bilac despertara na minha geração, enxergava eu agora, à luz espiritualista da doutrina cristã, com uma simplicidade que me encantava. Compreendi as razões profundas da autonomia do Município e da independência e soberania da Pátria. Esses conceitos não se firmavam em simples convenções, em meros artifícios jurídicos; decorriam da própria intangibilidade humana que, por sua vez, era natural consequência da existência da alma e da sua liberdade e responsabilidade.

Quando lancei a doutrina integralista, na Sociedade de Estudos Políticos, fundada em São Paulo, joguei esta frase a uma assembleia sedenta de reformas sociais e vibrando consoante o mote da época, em espírito revolucionário: “Façamos todas as reformas que julgarmos necessárias, mas não toquemos no homem, que nasceu livre e deve ser livre”.

Partindo desse princípio, o da liberdade humana, o da intangibilidade da pessoa humana, o da livre expressão do Homem até ao ponto que não ultrapasse os limites morais que lhe são traçados, exatamente para impedir-lhe que fira em outros homens os mesmíssimos direitos que lhe assistem, a verdadeira democracia terá de garantir, não apenas as prerrogativas estritamente condizentes com o Homem isolado, mas ainda aquelas que concernem às manifestações da liberdade de cada pessoa.

De nada valeria uma liberdade meramente teórica. Seria um conceito estático e por conseguinte absurdo daquilo que é essencialmente dinâmico. A liberdade procura formas objetivas de expressão. E é só quando se encontra impedida de efetivá-las que a liberdade se manifesta em formas subjetivas. Podemos, até certo ponto, dizer que a liberdade é o processo de extroversão da personalidade, no tempo e no espaço. É uma espécie de irradiação do ser, atingindo zonas externas, ultrapassando as limitações físicas. Ninguém pode se dizer verdadeiramente livre, se não possui meios de expressão da sua personalidade.

Ora, não é preciso ser filósofo, bastando apenas saber observar com bom senso, para se verificar que o Homem, biológica e psicologicamente, utiliza-se de certos meios de exprimir-se em continuidade vital e espiritual. Permanência, perpetuação e movimento são aspirações constantes do Ser Humano. Conservar-se, propagar-se, manifestar-se, eis portanto os legítimos direitos da personalidade.

Conserva-se o Homem pelo trabalho com que aufere os meios materiais de subsistir. Propaga-se na sua descendência. Manifesta-se pela palavra e pelos atos de trabalho e de conjugação de esforços com os seus semelhantes. O trabalho toma a forma da profissão. A descendência a da família. A palavra e os atos, tomam a forma da vida social.

Logicamente, se o homem é livre, também devem ser livres as suas expressões legítimas: o grupo familiar, o grupo profissional, o grupo associativo, de caráter político, cultural, ou local.

A família deve, portanto, ser autônoma e livres os grupos profissionais e associativos, porque participam da intangibilidade e da liberdade da pessoa humana. Mas essas liberdades necessitam de garantias físicas, uma vez que o Homem é ao mesmo tempo Espírito e Corpo e este precisa de meios materiais de subsistência para estar apto a servir ao Espírito. Por conseguinte, ao homem devem ser assegurados os direitos de justa remuneração do seu trabalho, entendendo-se por justa aquela remuneração que lhe garante a própria manutenção e a manutenção da sua família, facultando-lhe ainda a aquisição de bens que garantam a estabilidade econômica da sua prole. A esses bens, chamaremos “propriedade”, a qual não deve ultrapassar os limites impostos do bem comum, do mesmo modo como a liberdade de palavras e de atos não pode invadir idênticas prerrogativas de terceiros.

O justo salário e a propriedade legítima tornam-se, evidentemente, participantes da intangibilidade e da liberdade da pessoa humana e dos grupos naturais em que esta se coordena, se exprime e se manifesta.

Chegamos, portanto, à conclusão de que sendo o Homem um ser livre e responsável (pois não pode haver liberdade sem responsabilidade), livres também devem ser, não apenas os grupos naturais em que o Homem se manifesta, mas ainda os instrumentos físicos garantidores da permanência e intangibilidade da continuidade e dos movimentos da pessoa humana e dos grupos naturais. Podemos, por consequência, proclamar que o Homem é livre, livre a sua Família, livre o grupo profissional em que as pessoas se reúnem para defender os interesses do Homem e da Família, livre a remuneração do trabalho humano (e entende-se por livre o que for justo, e não a tabela imposta pelos exploradores dos seus semelhantes) e livre, finalmente, a propriedade, que é base física dos indivíduos e das famílias.

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Isto posto, pergunto: o que é o Município?

Responderei: é a reunião de pessoas livres, de famílias livres, de profissões livres, de propriedades livres.

Ora, se o Município é reunião de seres e de coisas livres, como pode ele deixar de ser livre? O Município, por conseguinte, é autônomo, como conjunto de pessoas, famílias, profissões e propriedades autônomas. O Município existiu antes do Estado, como as Famílias existiram antes do Município, como as Pessoas existiram antes das Famílias, e como Deus Criador existiu antes das Pessoas, a estas outorgando, ao fazê-las à sua imagem e semelhança, o dom supremo da liberdade.

Do mesmo modo como as pessoas e as famílias precisam de uma base física, ou seja, o salário justo e a propriedade, do mesmo modo o Município necessita de uma base física, ou seja, uma arrecadação, compatível com as exigências da administração local, e uma área territorial, que corresponde para a coletividade dos munícipes o mesmo que a propriedade particular significa para as pessoas e para as famílias.

A autonomia municipal, logicamente, só pode ser efetiva, real, prática, se as suas rendas compatibilizarem-se com as suas necessidades e se — eis aí um ponto importantíssimo — se o seu território se conservar intangível.

Se o território municipal, como vimos, representa para o conjunto das pessoas, famílias e grupos de trabalhadores locais a mesma coisa que a propriedade individual ou familiar significa para o Homem e a sociedade doméstica, também é forçoso concluir que esse território, na sua intangibilidade, configura, miniatural e eloquentemente, a própria Soberania da Pátria sobre a superfície que compõe o mapa da Nação. E não apenas configura, mas justifica o domínio da Nacionalidade sobre o patrimônio territorial que historicamente lhe compete.

Se não, vejamos. Que é a Nação? É um conjunto de pessoas livres, de famílias livres, de profissões livres, de municípios livres. Dessas liberdades (cuja fonte inicial é a liberdade da pessoa humana) decorre o princípio da Soberania Nacional, a qual não teria sentido, nem justificação jurídica ou ética, se apenas se impusesse como arbítrio, de cima para baixo.

O que difere a Soberania Nacional do conceito de Império (tal como foi na dominação romana, ou nas mais remotas dominações de Alexandre, de Ciro, de Cambises, ou posteriormente, na amplitude das monarquias dos árabes, ou de Carlos V, ou Filipe II, ou mais posteriormente na hegemonia napoleônica) é justamente a origem dos direitos sobre povos e áreas territoriais. Aqueles impérios exerciam seus governos e efetivaram a posse dos territórios em consequência de guerras de conquistas, ou de heranças, quando o conceito de soberania se integrava na concepção dos direitos dinásticos. Foi assim que todo o Brasil passou a pertencer à Espanha, quando se extinguiu a linha portuguesa da sucessão ao trono, herdando o rei Filipe a todo Portugal e seus domínios.

Mas o conceito da Soberania Nacional — numa democracia que repele guerras de conquista e que prescreve a solução de suas pendências com os vizinhos por meio de arbitragem — origina-se do próprio conceito da “vontade geral”, cujas raízes se embebem nos direitos legítimos do Homem, em última análise, no respeito à intangibilidade e liberdade da Pessoa Humana.

Ora, se negarmos à Pessoa Humana um dos seus direitos, logicamente negamos a todos. Porque a Pessoa Humana ou é livre em tudo o que for legítimo, ou, sendo livre apenas em umas coisas e não em outras, não exerce a sua liberdade em toda a plenitude: logo, não é livre.

Vimos que o Homem para ser livre precisa que se lhe facultem os meios de expressão de sua liberdade. Esses meios de expressão, como temos demonstrado, são: a família, a profissão, a propriedade, o município. Não se compreende que um homem seja livre e que a sua família não o seja; que o homem e a família sejam livres, mas que o grupo profissional não seja livre para defender a justa remuneração do trabalho e trabalhar pelo aperfeiçoamento dos misteres; que o homem, a família e o grupo profissional sejam livres, mas que as propriedades não o sejam, impedindo-se ou dificultando-se o exercício do direito de jus, domínio e transmissão a pessoas ou a entidades jurídicas constituídas de pessoas livres; por consequência lógica, irredutível, não se compreende que sejam livres pessoas, famílias, profissões e propriedades, isoladamente, sem que o conjunto dessas liberdades, o Município, não se exprima também em liberdades.

Se a liberdade da Pessoa Humana só se exprime singularmente e não em conjuntos de pessoas humanas, cai por terra o princípio da vontade geral e da soberania nacional. Se essa mesma liberdade está impedida de manifestar-se por uma de suas formas legítimas, deixa de ser liberdade, extinguindo-se a fonte de onde deriva a soberania da Pátria. A Nacionalidade é um conjunto de Municípios. Nestes, é que se exprime, familiarmente, profissionalmente, socialmente, politicamente, a vontade da Nação. Se a liberdade do Município for ferida, não haverá liberdade política, mas sim intromissão do Estado impondo o seu arbítrio aos eleitores temerosos de represálias ou perseguições. E desde o momento em que os munícipes, aterrorizados pelas ameaças do Governo Estadual ou do partido eventualmente dominante, não possam mais manifestar pelo voto livre a sua liberdade, deixou de haver Soberania Nacional, pois esta se fundamenta na vontade geral e a vontade geral, por sua vez, é a soma das vontades particulares.

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O que se deu em 1935 com o meu município natal foi verdadeiramente inominável como atentado ao princípio em que se baseia a própria soberania da Nação Brasileira. Havia ali uma questão de limites entre os Estados de São Paulo e de Minas Gerais. Como brasileiro integral, como homem de espírito nacional que se não prende a questões provincianas, o fato de São Bento do Sapucaí ser paulista ou mineiro pouco importava; o essencial, para mim, para a doutrina que adoto da intangibilidade dos municípios, era que se não mutilasse o território municipal. Não vou ao extremo de impedir-se a criação de novos municípios, quando uma parte do antigo se desenvolveu suficientemente, quando os seus habitantes manifestam expressamente o desejo de constituir nova célula municipal e quando essa separação (isto é importante) não vai determinar o exaurimento das rendas do antigo, de tal sorte que este não possa manter-se, pois neste caso seria preferível a mudança de sede, mediante eleição geral em todo o território municipal, a fim de que meia dúzia de ricos, por produzirem renda maior, não imponham a sua vontade a uma maioria de habitantes. O essencial é respeitar-se a autonomia municipal manifestada na vontade do povo.

Pois bem; o que se deu em 1935 foi apenas o seguinte. Os Estados de São Paulo e de Minas Gerais, para acertarem suas pendências, resolveram retalhar, mutilar o meu município. Tirou-se um distrito inteiro (o distrito de Candelária) e passou-se para Minas; tiraram-se umas abas de terras de um dos municípios mineiros limítrofes (não o beneficiado com o novo distrito) e passaram para São Paulo. De tudo resultou que Minas Gerais e São Paulo deram-se por satisfeitos, mas quem pagou foi o município de São Bento do Sapucaí. Não se respeitou a autonomia municipal no que concerne ao seu território.

Agora, cogita-se de transferir o distrito de Santo Antônio do Pinhal para o de Campos do Jordão, segundo me escreve o amigo a quem me refiro no começo deste artigo. Alega-se a facilidade dos meios de comunicações daquele distrito para o novo centro ao qual pretendem adjudicá-lo; mas a alegação não procede, porque se fôssemos atendê-la, fácil seria aos Estados, todo-poderosos nesta falsa democracia, punir municípios rebeldes nas pugnas eleitorais, construindo melhores vias para outras cidades submissas aos ditames dos prepotentes, preparando, assim, a desanexação territorial do município a punir-se pelo crime de se manifestar livre nas eleições.

O Estado e a União absorvem colossalmente as rendas municipais (conforme ainda há dias se queixava em palestra comigo o Prefeito do município de Leopoldina, em Minas, repetindo a queixa idêntica do Prefeito de Ourinhos, em São Paulo) e, dessa forma, usam a seu talante do dinheiro para beneficiar municípios onde a submissão política se consumou, em detrimento de outros onde os munícipes querem ser livres nas eleições municipais, estaduais e federais. Os partidos dominantes nos Estados ou os Governadores, ameaçam os agrupamentos locais às vésperas dos pleitos eleitorais. Passadas as eleições, começam as perseguições. Removem-se, demitem-se professores secundários ou primários, promotores públicos, delegados de polícia, inspetores de ensino; cortam as verbas para serviços públicos e casas de caridade: finalmente fere-se o território municipal, usando-se de artimanhas, de atentados de toda espécie.

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A isso se chama no Brasil, democracia. Os homens públicos, os governantes, os legisladores, os Licurgos de gabinete, os Brenos que argumentam com a espada e o vae victis impositivo, e ainda os demagogos que falam em liberdades populares e se apresentam como os lídimos expoentes da hipócrita granfinagem democrática, esquecem-se de que a Democracia não existe onde os cidadãos se sentem ameaçados e espoliados pelo Poder Público. Esquecem-se de que a palavra “democracia”, etimologicamente quer dizer “governo do povo” e que o povo só é livre quando livres são as suas partes componentes, quando as pessoas são livres, as suas famílias livres, as suas propriedades livres, o Município livre na plenitude da sua autonomia.

Quando combatemos esses desmandos, chamam-nos totalitários. Grandes fariseus! O que nos vale contra eles é que, se eles se esquecem daqueles primordiais princípios em que assenta a verdadeira Democracia, também se esquecem de que o Povo já os vai desmascarando e que não tardará o dia em que se levantará, desfraldando a bandeira da liberdade e sustentando os postulados em que repousa o próprio edifício da Pátria soberana e independente. Os municípios se unirão, os municípios falarão nas urnas, os municípios, defendendo as suas prerrogativas, contra as prepotências dos sátrapas, defenderão e garantirão a própria integridade da Pátria Brasileira.

Plínio Salgado
“Idade Nova”, 3 de junho de 1948.