No recente dia 3 de maio, segundo informou o correspondente em Berlim do jornal de Londres Guardian, reuniram-se os escritores e artistas da Alemanha Oriental, convocados para uma conferência de três dias pelas autoridades soviéticas. Ali foram avisados de que a “coexistência pacífica, adotada pelo comunismo no campo econômico e político, de nenhum modo pode vigorar no terreno das artes”.
A campanha da Rússia contra a influência da cultura ocidental lançada recentemente em Moscou estendeu-se, portanto, aos países da chamada Cortina de Ferro. Iniciou-se o movimento isolacionista da arte soviética ao pronunciar o Czar Vermelho, há cerca de um mês, um discurso em que condenou o “abstracionismo e outras distorções artísticas”. Em consequência, a “arte moderna” do Ocidente, pregando e impondo o “realismo socialista”.

Discurso de Lênin no Segundo Congresso do Komintern, de Isaak Brodsky
Os escritores e críticos de arte do mundo comunista tiveram de penitenciar-se confessando os seus erros. Entre eles, Wolfgang Langhoff lamentou o grave pecado que cometera, elogiando a encenação de uma peça teatral, e, procurando justificar-se, declarou fora a isso levado pelas falsas ideias mantidas por ele e muitos colegas, iludidos pelos critérios burgueses que inspiram a arte nos países capitalistas.
Meditando sobre a atitude assumida pela Rússia à interpretação estética, ocorreram-me várias considerações.
A primeira delas é histórica. Refere-se à invasão dos bárbaros na Europa, dando início ao primeiro período da Idade Média, quando a arte clássica desapareceu completamente, só ressurgindo no período pré-renascentista, por influência das descobertas arqueológicas sobre a escultura, a pintura e a arquitetura, e pela renovação literária decorrente dos palimpsestos reveladores do límpido estilo dos antigos.
Sempre atribuí à invasão dos povos das florestas nórdicas e das estepes orientais o eclipse da arte greco-romana. Tive, entretanto, de alterar meu julgamento, após a leitura de um livro intitulado L’Église et l’art, de Louis Dimier. Notei que o que eu tinha por “causa” não passava de efeito. Não fora a destruição do Império Romano que ocasionara o desaparecimento de tudo quanto advinha da civilização helênica, mas, pelo contrário, a decadência da arte representou um estado de espírito de decadência política e desintegração das resistências nacionais e institucionais.

Retrato de Galério no Arco de Galério, século IV
O autor do livro a que me refiro, pesquisou quanto se relacionava com as expressões artísticas a partir dos fins do século IV. Devera constituir um mistério impenetrável a decadência da arte ao abismo em que foi precipitada após a morte do imperador Teodósio. “Por uma reviravolta” — escreve — “da qual jamais o mundo oferecerá outro exemplo, a arte volveu ao seu estado de infância. Não se sabia mais exprimir a proporção de um corpo, nem reproduzir um rosto humano, nem representar, sem provocar riso, um gesto, um movimento, uma ação. A tradição do Ocidente atribui à invasão dos bárbaros esta degradação. Mas seria preciso, para que assim fosse, não se haver o mal manifestado antes da invasão de Alarico. Seria preciso, sobretudo, não haver sido Constantinopla, que não fora invadida, a metrópole dessa corrupção”.
O fato mais notável a observar-se na degeneração da arte clássica e sua total abolição, foi que tudo ocorreu em menos de cem anos, exatamente como agora, se notarmos a rapidez com que viemos do impressionismo na pintura, ao cubismo, ao dadaísmo e ao abstracionismo, e do simbolismo na poesia, ao expressionismo, ao hermetismo, ao concretismo.
Em Constantinopla e em todo o Império dividido e agonizante, perdera-se a noção das perspectivas, dos volumes, da proporcionalidade das formas, da harmonia das cores. E enquanto Louis Dimier vê nesse acontecimento “mistério jamais desvendado”, penso, estabelecendo a correlação dos fenômenos sociais então correntes, poder, a meu critério, explicar o que se passava.
Tenho para mim que, exprimindo-se a Natureza na diversidade de sua unidade, podemos considerar em perfeita identidade de origem, substância e processo de manifestação, a Verdade, o Bem e a Beleza. Quando a Verdade se dilui na elucubração confusionista, levando o Homem a perder a noção de si mesmo; quando o Bem, consequentemente, submete-se aos mais variados conceitos éticos, já não se sabendo distinguir o bom do mau para a determinação das normais de conduta: também o Belo se condiciona àqueles estados de espírito e subjetivamente as suas formas e expressões se decompõem e se desintegram.

La Source, do cubista francês Francis Picabia
Se a Verdade é a revelação da harmonia, que se encontra num raciocínio lógico, na solução de um problema matemático, na intuição perspicaz, nas deduções de que afloram as conclusões dos pensamentos linearmente corretos, teremos de aceitá-la como uma expressão estética. Se o Bem é a procura dos comportamentos conformados às leis de Deus, que são as do equilíbrio perfeito exprimindo-se em atitudes e atos agradáveis para o Homem e seus semelhantes, também teremos de convir em que ele — o Bem — se confunde com a Beleza. E se esta, nas suas manifestações artísticas, deve procurar exprimir a realidade do mundo exterior, ainda que traduzidas através dos temperamentos, segundo a interpretação dos sentidos e as refrações do mundo inferior, não podemos negar que a Beleza se identifica tanto com a verdade como com o Bem.
Ora, numa época de confusões filosóficas em que a Verdade se desintegra e o Bem se degrada em consequências mesmo da geral perturbação dos espíritos, nada mais natural do que que os artistas — intérpretes da Beleza — caiam naquele desnorteamento que assinalou os últimos tempos do Império Romano, tanto no Oriente como no Ocidente.
A influência política, exercida por semelhante mentalidade, é evidente. Ninguém luta para defender senão o que possui. A derrocada da civilização greco-romana era inevitável pois a resistência dos povos se encontra nas forças morais decorrentes de um conceito de verdade. Não mais existindo o patrimônio coletivo e a integração dos interesses particulares no interesse geral, nenhum cidadão é capaz de sacrifício pessoal e a sua coragem se dissolve no egoísmo e na comodidade.

Batalha do Avaí, de Pedro Américo
A arte decadente em Constantinopla correspondia às controvérsias filosóficas, às distorções da Verdade, como também à degeneração dos costumes de uma sociedade que misturava as crenças religiosas com a satisfação dos sentimentos. A invasão dos bárbaros foi, portanto, uma consequência da incapacidade de defesa de uma Europa cansada e em agonia. Contidos além do Reno e do Danúbio, desceram os godos, visigodos, suecos, alanos, trazendo as energias nascentes das noções conquistadoras as quais, mais tarde, criariam, sobre as cinzas do antigo Império, a civilização que, hibernada nos primeiros séculos medievais, deu sangue novo à greco-latinidade, e restaurou as harmonias da civilização helênica no esplendor do Renascimento.
Estas meditações históricas se aplicam ao nosso tempo. Para se ter noção da fraqueza do Ocidente em face do mundo soviético, basta ver os padrões de arte que, tendo sido um momento verdadeiramente moderno, pela libertação dos cânones acadêmicos, e que representou em nosso tempo algo parecido com o movimento do século XIX, agora regrediu dezesseis séculos, para se identificar com a decadência bizantina. Se a concepção do Homem é insegura, variando das unilateralidades de Nietzsche e de Freud para as de Marx e Sartre, nada mais lógico do que, na ignorância do que seja o ser humano espiritualmente, também deturpemos a sua forma física, apresentando-a na tela ou na escultura, em desproporções anatômicas, de tal sorte que, nos séculos futuros, se apenas restassem as pinturas e esculturas dos dias atuais, os pósteros julgariam ter vivido sobre a terra, no século XX, uma geração de monstros disformes.

Abaporu, de Tarsila do Amaral
Desde a frase de Oscar Wilde, dizendo que a arte está acima do bem e do mal, assinala-se a fase burguesa e capitalista das concepções estéticas. Verifica-se hoje um novo parnasianismo, ainda que pareça paradoxal. A escola parnasiana foi o resultado do surto comercial da revolução industrial da Europa, dos nouveaux riches que encheram as cortes contemporâneas de Napoleão III, de barões e comendadores de matéria plástica. A preocupação exclusivamente da forma, segundo os figurinos de Leconte, ou de Heredia. Era uma arte burguesa, de uma sociedade sem problemas. Em nossos dias, deturpando e traindo o verdadeiro modernismo de 1922, que foi uma rebelião contra os rigores da forma academicista, não vemos outra coisa senão o culto da forma, mas das formas abstratas apreciadíssimas pela plutocracia.
Tem razão Kruschev quando se insurge contra essa arte sem mensagem, que se fez o hobby das disponibilidades mentais em crise de desemprego ideológico. Sou adversário do comunismo por julgá-lo a maior expressão do unilateralismo do século XIX. Mas nem por isso deixo de reconhecer que a Rússia, dentro do erro de sua concepção social e política, tem sobre nós a superioridade de crer em alguma coisa e de fazer dessa crença a inspiração de toda a sua estrutura econômica, política, militar, científica e artística.
Por isso, somos nações indefesas e podemos cair sob a sua tirania. Porque a defesa nacional tem raízes mais profundas. Aquelas que buscava o general MacArthur, quando perguntava a propósito da Guerra na Coreia: “Em nome do que estamos combatendo?”
Plínio Salgado
Rede Diários Associados, 12 de junho de 1963.