Na série de despretensiosos artigos, que publicamos nestas colunas [da Folha da Manhã], sob a epígrafe “O Problema Constitucional” e de fevereiro a maio do corrente ano, combatemos o retorno ao regime constitucional de 24 de fevereiro [de 1891] por vários motivos, o mais chocante dos quais de ordem lógico-natural. Frisamos, então, que toda a lei jurídica — de direito público constitucional ou privado — como qualquer lei física, química, biológica, astronômica — apresenta o característico de provir de fatos ou fenômenos, que por seu turno indiscrepantemente provêm da Natureza — efeito direto da Causa das causas, que designamos, usualmente, pelo nome de Deus.
Abstraindo essa Causa original, a Constituição de 1891 abstraiu a Natureza, e portanto os fenômenos ou fatos naturais, e portanto nega todas as leis, que nada mais são que as relações necessárias, derivadas dos aludidos fatos ou fenômenos naturais. Negando, assim, a ordem legal, aquela constituição ipso facto afirmou a desordem ilegal, sob cujos vagalhões as revoluções sucessivas fizeram-na sucumbir.
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Nessa série de deduções, mera e friamente lógicas, não há exagero. Qualquer calouro da faculdade sabe que a origem do direito é o fato: ex-facto oritur jus. E aprende, ao demais, nos mestres romancistas, que tão íntima é a relação entre o fato e o direito, que a menor diferença de fato induz a máxima diferença de direito: minima differentia facti, magnam inducit differentia Juris.
Entretanto, não é só na lei jurídica que a pequena variação do fenômeno pode induzir à magna diferenciação da lei. Em ciência, das chamadas naturais (como se as jurídicas e sociais fossem artificiais) dá-se o mesmo: a composição química da esmeralda é idêntica à do berílio. Pequena diferença no arranjo molecular faz a esmeralda ser verde, rara e cara, quando o berílio é branco, comum e barato…
Portanto, estabelecer um código de leis sem estudar detalhadamente o panorama dos fatos ou fenômenos naturais do ambiente social respectivo é tão absurdo como pretender ser-se engenheiro sem haver estudado aritmética. E, estudados tais fenômenos ou fatos naturais, negar a Causa que os originou, é ser mais ignaro que o índio das selvas, o qual, encontrando o relógio do civilizado, ou presenciando o tiro de sua espingarda, logo é levado a, maravilhado, perguntar quem teria feito tais objetos, que transcendem a sua imaginação.
As leis jurídicas ou de quaisquer ciências, stricto sensu chamadas naturais, procedem da Natureza e esta de Deus, como a flor procede da árvore e o fruto da flor.
O estudo e a disposição dos materiais para nossa futura construção constitucional, dentro da coerência do enunciado supra, e partindo do alicerce fundamental para a cumieira mais elevada, do geral para o particular são, portanto:
1. Deus, Causa de toda a Natureza;
2. A Natureza, em geral, efeito direto da Causa divina;
3. A Natureza em particular, específica, característica, do meio físico brasileiro, do homem e da sociedade brasileiros, adstritos a nascer, viver e trabalhar nesse meio natural especial;
4. O Direito brasileiro, em geral, decorrente das relações sociais específicas à ambiência brasileira, supra descrita;
5. O Direito privado brasileiro, estudando as necessidades do brasileiro antes como “homem”, que como “cidadão”. Não esquecer que a sociedade é a soma (portanto efeito aritmético) de todos os homens. E que cada homem, parcela desse total, contém uma série de vidas, com necessidades especiais características, que se não forem atendidas, importarão no perecimento dos homens e portanto no do total dos homens, que é a Sociedade, e portanto no próprio perecimento do Estado, que é a Sociedade juridicamente organizada. As várias vidas de cada homem, cujas necessidades urgem atender, para que se conserve e não pereça a sociedade dos homens e o Estado são, pelo menos:
I) a vida pré-natal — desvelos ao nascituro, proteção higiênica e sanitária à mulher grávida;
II) a vida natural — padrão de vida mínimo quanto à alimentação, habitação, vestuário, higiene e saúde: combate aos flagelos da sífilis, alcoolismo, moléstias venéreas, lepra, amarelão, tracoma, malária, que infestam as cidades e os sertões brasileiros e paulistas;
III) a vida familiar — cristianização da família, rejeição do divórcio a vínculo, salário familiar, voto familiar;
IV) a vida econômica — salário mínimo, “o trabalho cada vez mais dominante, a natureza cada vez mais dominada”, o capital cada vez menos agiotário;
V) a vida social — a proteção que o homem deve encontrar na sua classe ou sindicato profissional, ou patronal, ou operário, ou agrícola, ou cultural etc.;
VI) a vida política — intervenção do homem e sua classe na administração do seu município, que é o prolongamento natural de sua vida familiar;
VII) a vida sobrenatural — educação moral do homem, para que sua alma volte a repousar no seio de Deus, no momento em que seu corpo é restituído à decomposição pela Natureza. Assim, é fechado o circuito de todas as vidas: o homem, que partiu da Natureza pela graça de Deus, volta a Deus restituído pela Natureza.
6. Estudo do Direito Público brasileiro, atendendo imediatamente às necessidades do Estado brasileiro, depois de atendidas as sociais dos respectivos indivíduos e classes profissionais;
7. E, finalmente, último efeito dessa imensa cadeia de causas naturais, o estudo e a elaboração da Constituição brasileira, naturalmente emergindo do direito público brasileiro, esboçado no item supra.
II
Somos pela unidade nacional, condicionando:
a) a máxima centralização política;
b) a máxima descentralização econômico-administrativa.
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As pedras angulares — Deus e Natureza — como causas mais longínquas de toda a lei (física, biológica, astronômica ou jurídico-constitucional), uniformemente se caracterizam na apresentação:
a) da máxima unidade integral substancial;
b) da máxima variedade diferencial em formas ou atributos.
Quem, a respeito, quanto a Deus, queira aprofundar-se, basta ler Sertillanges, que vastas vezes citamos no O Problema Constitucional, quando mostramos a impossibilidade do Estado leigo ou ateu.
Quando qualquer caboclo assevera que tão impossível quanto Deus pecar é Ele encontrar quem O iguale, reconhece a unidade divina. Não obstante esse caráter de unidade, ela se manifesta de maneira tão variada em atributos ou formas — que seu conjunto chega a parecer contraditório ao homem superficial, dificilmente capaz de compreender a conciliação unitária da infinita variedade, que vai da suma justiça à suma misericórdia.
Quanto à Natureza, a tese oferece, também, fácil demonstração quanto ao mesmo caráter de unidade ao lado da variedade. Todas as folhas de todos os vegetais são unitariamente folhas; mas variam desde a da palmeira a do cacto, a da casuarina a do plátano a do cinamomo.
Todos os dedos são, unitariamente, dedos: basta ver-se a ficha datiloscópica, não já de dois homens, mas de dois dedos do mesmo homem, para notar-se a infinita variação respectiva. O mesmo dir-se-ia das rochas, dos cristais etc. Todo o erro do pensamento científico desde Galileu até há bem pouco tempo consistiu em confundir as variações de forma da Natureza com variações de substância. Galileu afirmou a distinção substancial entre a força e a matéria. Bucker, exagerando-o, repetiu-o.
A química de há vinte anos afirmava a variação e a diversidade substancial dos corpos simples.
A ciência do século XX, sob provas concludentes de laboratório, assinala profunda marcha-a-ré para o hilemorfismo de Aristóteles — a unidade da matéria originária ao lado da variedade de forma substancial. Assim, as experiências de Kaufmann, em 1903, confirmavam a previsão de Max Abraham, no sentido da unidade da massa, aquilo que parecia ser massa mecânica sendo substancialmente idêntico à massa elétrica.
Que a energia, qual a luminosa, é simples forma acidental da massa, como tal o raio luminoso é atraído pela massa maior do sol. E que, desde que se penetre a intimidade planetária do átomo, a contemplar o espetáculo maravilhoso dos elétrons a gravitar à volta solar dos prótons nucleares, ninguém mais pode falar em corpo simples.
O eminente divulgador Moreux, escreveu interessantíssima monografia sobre a alquimia moderna, citando casos daquilo que se chamaria transubstanciação da matéria, e que em nada mais consiste que despi-la da forma, que lhe aderira à substância, e mostrá-la na unidade substancial.
Ainda presentemente, a Universidade de Cambridge ostenta as experiências de dois físicos — Cockroft e Walton — que se utilizando de núcleos de hidrogênio, como obuses de bombardeio, na sua pitoresca linguagem, transformaram (sic) o alumínio em 1903, confirmavam a previsão de massa atômica, de 27 para 24. Nada transformaram: a ambos esses corpos eliminaram a variedade de forma, ficando a unidade essencial.
A ânsia de nossa idade, em procurar a unidade natural, vai mais longe: Minkowski, concebendo a quarta coordenada ou linha universal do tempo ofereceu, assim, criando o hiperespaço, o caráter de unidade às categorias, supostas antagônicas, de espaço e tempo.
E a origem da glória de Einstein está em, partindo daí, haver demonstrado que a matéria física provém, unitariamente, do contínuo hiperespacial de Minkowski. Vê-se, daí, que todo o esforço da ciência moderna consiste em procurar unidade em tudo quanto nos fira as vistas como variedade. E o laboratório vai confirmando quanta razão assistia a Duns Scott, no século XIII, quando esse insigne opositor de Santo Tomás de Aquino asseverava: “appetitus unitatis, ita intimus, et essencialis et universalis, est in omnibus”.
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A infinita variedade formal apenas torna latente esse apetite essencial e universal, que todas as coisas naturais manifestam pela unidade. Dir-se-ia que a Natureza é o estatuário, que possuindo infinito depósito de mármore (substância ou essência), se comprouvesse em esculpir estátuas de homens, animais, vegetais ou minerais (formas substanciais), variações essenciais que por seu turno variarão em formas acidentais: a estátua de homem magro ou gordo, de cavalo de cauda curta ou longa, e assim ao Infinito. A essência seria sempre a mesma: mármore. Mas, a fórmula, aderindo-lhe como a lepra à pele, no significativo dizer dos estudiosos medievais, é que daria ser à coisa.
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O legislador de fenômenos naturais, de física ou de direito, chame-se Ruy Barbosa ou Einstein, não induzirá leis perfeitas desconhecendo-lhe ou abstraindo-lhe esse duplo caráter, de unidade, subsistindo com a variedade. Porque, caráter essencial à Natureza e ao Ser necessário, como as propriedades químicas e físicas do mármore nas estátuas do exemplo supra, ele se transmitirá a todos os fenômenos, a todos os homens, a toda a sociedade dos homens, e portanto, a todos os Estados, que nada mais são que cadeias de efeitos, cada vez mais longínquos, das causas básicas: a Natureza e seu supremo Criador. Isso no ponto de vista geral.
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A Natureza e a sociedade brasileira não fazem exceção à regra universal: por infinitas variedades que apresente o panorama dos vales respectivos, o olhar do garimpeiro descobre a cintilar-lhes, ao fundo, a luz de um princípio de unidade, dos dias de São Vicente aos nossos dias.
João Carlos Fairbanks
“Folha da Manhã”, 16 e 25 de novembro de 1932.