Está na ordem do dia a discussão sobre o valor dos partidos políticos e sua responsabilidade na condução dos destinos nacionais. Setores da opinião pública opinam sobre a necessidade da redução do número. E afirmam: 13 partidos são demais e perturbam a vida nacional. Os chamados grandes partidos voltam-se contra os pequenos e acusam-nos de responsáveis pelo malogro da democracia brasileira. Os pequenos, por sua vez, devolvem a acusação, fazendo a mesma acusação aos grandes, pedindo, para começo de conversa, a extinção de todos para uma reformulação completa do panorama do pluripartidarismo brasileiro
De toda esta discussão, uma coisa se tornou evidente a todos os brasileiros: os partidos políticos fracassaram. E fracassaram, porque não possuem capacidade para captar a vontade popular. O povo, pelo que possui de mais representativo, de mais autêntico, não vê nos partidos o instrumento adequado para representá-lo. Mais do que isso: o povo já constatou, já sentiu na própria carne que os partidos constituem elemento estranho na vida nacional. O partido é uma espécie de gigolô explorador dos sentimentos, das necessidades da vida nacional. É um elemento artificial, sem a menor consonância com os interesses autênticos dos grupos naturais da nacionalidade.
Quando os agricultores, por exemplo, os milhões de agricultores de todas as regiões brasileiras, os milhões de pequenos proprietários rurais, os milhares de grandes proprietários, fazendeiros, os milhões de trabalhadores sem-terra, de agregados, meeiros, posseiros — enfim, quando todos os que vivem da terra querem se fazer ouvir, não o fazem por meio de um partido político, mas sim pelas suas Associações Rurais, pelas suas Associações de Trabalhadores Rurais, pelas Federações Rurais e pela Confederação Rural.
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Quando os milhões de operários das grandes e pequenas cidades pleiteiam suas reivindicações, fazem-se por meio de um partido? Não. Seus porta-vozes são os sindicatos, as associações operárias, os Círculos Operários. São as Federações e as Confederações Operárias e Sindicais!
E a indústria e comércio procuram, por acaso, um partido para ser porta-voz de suas advertências e conselhos dirigidos ao Governo e à Nação? Também não. Estas atividades naturais do mecanismo econômico e social de uma nação possuem seus representantes naturais, representados pelos Centros da Indústria e do Comércio, as Federações e as Confederações.
Agricultores e operários, indústria e comércio, ninguém se vale da máquina partidária no encaminhamento de suas reivindicações, na divulgação do próprio pensamento. O partido político brasileiro é um órgão espúrio, perturbador, sem credenciais na economia dessas grandes forças nacionais. O partido nada representa para elas. O partido é evitado por elas, porque não sentem a menor sintonia com ele. E evitam-no, porque não querem introduzir um corpo estranho em um mecanismo.

Luís Compagnoni em 1949
Mas, continuemos analisando o comportamento de outros importantes grupos naturais que integram a Nação, grupos que constituem órgãos vivos e imprescindíveis no funcionamento da vida nacional. Como se comportam os militares, como grupo, perante os partidos políticos? Nada querem com eles. São elementos que se repelem. E a Igreja, o Clero, as congregações e ordens religiosas, as várias confissões religiosas, as várias confissões ou entidades de objetivos espirituais — que querem elas dos partidos? Nada. Querem distância — como se diria em linguagem popular.
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Os partidos políticos brasileiros, nos dias presentes, constituem entidades artificiais, estranhas ao corpo nacional, sem consonância com os verdadeiros interesses do povo. É assim que o povo os vê. Mesmo os melhores partidos, aqueles que por sua tradição, por seu ideário ou pela sua excelência de alguns de seus membros, justificariam sua permanência no panorama atual de nossa democracia — mesmo estes, pela indiferença do povo, não conseguem progredir e empolgar este mesmo povo.
Os defensores dos partidos políticos contra-argumentam, apontando o exemplo da Inglaterra e dos Estados Unidos. E se derramam em elogios aos sistemas lá existentes, invocando-os a todo o instante. Esquecem-se, porém, de observar que os partidos ingleses e norte-americanos são produtos de um processo histórico, típico daqueles países, mais frutos de uma tradição, da consagração de costumes políticos sedimentados através da História. Lá, os partidos políticos foram os herdeiros de práticas consagradas que se incorporaram ao patrimônio nacional. Foram os depositários das tradições democráticas e não seus estruturadores ou criadores. Foram uma consequência e não um ponto de partida. Quando se fala num grande partido inglês ou americano, existe sempre mais de um século de bons serviços a fortalecer-lhe a sua autoridade. O povo os respeita e acata, porque fazem parte do patrimônio nacional, porque possuem um acervo de imensos serviços prestados à Nação, porque se confundem com a História do próprio país.
E aqui, como o povo brasileiro vê os partidos? Vê nestes o ajuntamento de maneirosos clientes do Poder, explorando a ignorância do povo, principalmente do interior, sempre prestativos e subservientes aos que estão em cima, incapazes de uma definição política ou pragmática, capazes de servir a qualquer regime ou sistema político, inclusive a pior das tiranias. Vê naqueles a concentração de homens de dinheiro, de banqueiros, industriais, comerciantes, fazendeiros, ligados a grupos financeiros internacionais — todos associados a juristas e constitucionalistas notórios, mas que continuam vendo o mundo e a Nação como nos tempos de Rousseau e da Revolução Francesa, incapazes de compreender um mundo onde predomina o social sobre o individual. Vê num outro partido a soma de todos os demagogos, que confundem os interesses de uma classe com os da Nação, que dizem servir ao social até o momento de enriquecerem individualmente. Vê em alguns partidos a reunião de idealistas sem capacidade de realização, ausentes de senso prático. Em outros, profiteus sem o menor idealismo nem espírito público.
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Sim, o povo reconhece a existência de homens idealistas, patriotas, cheios de boa vontade, de espírito público, dentro dos partidos políticos brasileiros. Mas tem pena deles. E sabemos que a compaixão é o pior sentimento que um homem público possa inspirar. É difícil existir coisa mais triste do que um político inspirando compaixão, ainda que seja grande, cheio de valor, de qualidades positivas.
Será solução para a Democracia Brasileira a extinção dos pequenos partidos? A extinção dos grandes? A extinção de todos e sua substituição por uma nova reformulação partidária? A criação de novos partidos será capaz de eliminar os profiteus, os demagogos e a influência do dinheiro nas eleições? Será capaz de eliminar esta malta de incompetentes, de corruptos, de medíocres, que pululam dentro dos partidos, das assembleias, dos governos? O povo não vê como. E não vê, porque sente que o mal é do sistema. É um mal de estrutura. É como querer reconstruir uma ponte que tivesse caído de podre, querendo aproveitar os mesmos materiais e objetivando uma ponte melhor que a primeira. Pior ainda: é como querer reconstruir a ponte num lugar onde não se deve construí-la, onde nunca deveria ter sido construída.
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Mas, para mostrar a nenhuma significação dos partidos políticos, na tarefa de representar o povo brasileiro, vamos mostrar, através dos números e da representação destes, o alinhamento dos grandes grupos naturais da nacionalidade no tocante à atual representação política.
No Anuário Estatístico de Brasília, do ano de 1962, encontramos, na matrícula geral do Ensino Primário Fundamental Comum, nada menos de 7.458.002 alunos, espalhados em todas as unidades da Federação.
Ora, estes 7 milhões de alunos, só no primário, representam outras tantas famílias, 7 milhões de casais, marido e mulher, somando 14.000.000 de brasileiros que lutam diariamente para dar instrução e educação a seus filhos. E sabemos que estas famílias estão reunidas, junto com os professores, públicos e particulares, formando associações de pais e mestres ou semelhantes, que se reúnem, discutem, deliberam, sobre a melhor maneira de educar estes milhões de alunos. Não só se reúnem, se associam, mas, também, trabalham, lutam, fazem despesas imensas com livros, vestuário, alimentação, transporte — porque a atividade educacional pressupõe uma série de atos para consecução de um objetivo.
Quem representa estes milhões de alunos, estes milhões de casais, de famílias, mais os professores, diante do Governo? São os partidos políticos? Evidentemente, não!
E os quase 2.000.000 de associados das Cooperativas, de acordo com o mesmo Anuário Estatístico, quem os representa? E sabemos, também, que a atividade das cooperativas é viva, vibrante, diuturna, sem desfalecimentos, representando fator decisivo para o equilíbrio da economia nacional.
E o quase 1.500.000 de sindicalizados, isto em 1961, quem os representa?
E também o milhão e meio de associados de instituições de caridade, mantendo quase 4.000 estabelecimentos de assistência, hospitais, para-hospitais, asilos, abrigos, orfanatos — são representados pelos partidos?
E os 200.000 ferroviários? E os milhões de pequenos, médios e grandes agricultores? E os 250.000 pescadores profissionais? E os 3.000.000 de associados de entidades desportivo-recreativas? E o milhão e meio de alunos nos ginásios, colégios, universidades, públicas e particulares? E as centenas de milhares de integrantes das forças armadas, Exército, Marinha, Aeronáutica e Forças Estaduais? E o milhão de condutores de veículos, caminhões, ônibus e de todo este complexo econômico-social que é o setor rodoviário? E as centenas de milhares de funcionários públicos federais, estaduais, municipais, autárquicos? São representados pelos partidos políticos?
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NÃO! Pelo contrário, existe um divórcio total, insuperável, intransponível entre estes grupos naturais, permanentes, vivos, atuantes, e os partidos políticos, entidades mortas, sem endereço, sem vivência dos problemas nacionais, que existem porque foram criados artificialmente, através de um dispositivo constitucional, em nome de uma tradição que não é brasileira.
A Nação vive de um lado, com suas instituições naturais, trabalha, faz progredir o complexo nacional, e, na hora de se fazer representar politicamente, é obrigada a passar procuração a órgãos fictícios, divorciados da realidade.
Por que, então, não dar representação política a estes grupos naturais, palpitantes de vida, fazendo com que seus líderes autênticos possam falar politicamente?!
Por que juristas, constitucionalistas, sociólogos, jornalistas, não debatem o problema da autenticidade da representação política, estudando fórmulas para que possam falar politicamente os órgãos vivos da Nação, que hoje estão artificialmente rolhados, substituindo as entidades mortas que insistem em querer falar nada sem representar?!
Por que insistir numa forma de representação política que todos confessam não ser capaz de bem representar a Nação?!
Representação dos grupos naturais, das instituições naturais brasileiras, econômicas, sociais, culturais — eis a fórmula para fazer o país sair do impasse atual, quando todos proclamam a falência dos partidos políticos. Eis a fórmula que fará justiça aos milhões de trabalhadores, das cidades e dos campos; aos milhões de associados de entidades cooperativas, sociais, desportivas, assistenciais, educacionais; aos milhões de servidores do Estado, civis e militares; aos milhões de brasileiros que fazem circular a riqueza nacional; aos milhões de comerciários, bancários, securitários, trabalhadores da orla marítima, portos e estaleiros.
Dar representação política a todos eles, que vivem, trabalham, discutem, decidem, progridem, em contato com os do seu grupo natural, permanentemente, todos os dias, para que elejam seus líderes naturais, que conhecem pessoalmente — e não obrigar a todos estes milhões e milhões de brasileiros a entrarem em contato com gente de partido, uma vez na vida, no dia das eleições.
Faz-se necessário terminar com o divórcio que existe entre o povo brasileiro e os partidos!
Novos partidos, formados dos destroços dos existentes, significará a continuação do divórcio, o não funcionamento do regime democrático, a falsidade da representação política, o desentrosamento entre os Poderes da República, a apatia e a indiferença do povo para com os destinos da Nação — tal como sucede nos dias presentes.
Luís Compagnoni
“A Marcha”, outubro de 1964. Artigo publicado após a Revolução de Março, precedendo o bipartidarismo.