O trabalhador infatigável, que fez das suas horas o campo da sua lavoura e da sua inteligência o instrumento arroteador acionado por uma vontade sempre desperta, suspende o seu esforço, por alguns momentos, para se dirigir a Deus por intermédio d’Aquele em cujo nome as almas devem falar.
E as palavras do trabalhador, vindo do fundo do seu coração, traduzem tudo o que ele sente, dizendo:
— Eis-nos chegados Senhor, depois de dois mil anos, e após tantas voltas do caminho, à mesma situação em que nos encontraste, quando Tibério César governava o mundo e Ântipas, Lisânias e Pilatos administravam a Galileia, a Traconítida e a Judeia. Então, como agora, dominavam os deuses do politeísmo. Então, como agora, os homens ansiavam por algo novo, que lhes fosse alívio e salvação.
Parece incrível, mas depois de termos nas mãos a chave da felicidade verdadeira, acabamos perdendo-a, no curso dos séculos, e hoje nos desesperamos porque as muitas que nos deram para substituí-la só nos abrem as portas da Casa da Loucura, onde há gritos de angústia, de cólera e de violência.
Naquele tempo, quando andavas à beira dos lagos ou no alto das montanhas, ensinando-nos as lições da Verdade, do Bem e da Beleza, o imenso mundo pagão erguia templos a Júpiter, a Minerva, a Baco, a Mercúrio, a Isis, e os inquietos pelo presente e pelo futuro buscavam na palavra dos oráculos e das sibilas a decifração dos seus destinos.
O Império Romano, conglomerando os povos, realizara também a assembleia das divindades de todas as nações, desde Ormuz e Arimã dos babilônios, a Osíris e Ámon dos egípcios e ao tenebroso Dispater dos druidas, os quais tiveram honras na Capital do Império, ao lado de Afrodite e de Jânus, do troante Jove Capitolino e do frio Saturno.
Mas eles não traziam tranquilidade aos corações dos homens, nem a felicidade atrás da qual andam a correr os seres humanos, porque uma e outra são o resultado de um sentido de harmonia, consoante à orgânica e ao ritmo universal, e eles, os deuses do paganismo, eram unilaterais e arbitrários em sua psicologia, em seus objetivos e em suas exigências.
Os deuses do paganismo tinham nascido da interpretação objetiva dos fenômenos da natureza pelo homem, uns simbolizando as expressões astronômicas, meteorológicas, geológicas e geográficas do universo visível, outros as expressões das paixões humanas, mas todos vistos na objetividade das exteriorizações que feririam a atenção dos poetas e dos pensadores.
Faltava harmonia à compreensão do universo. O politeísmo era arrítmico e desordenado. E, por isso, a tua palavra, Senhor, deu-nos a perceber a simplicidade grandiosa do mundo, espancou nossos terrores, valorizou a nossa vida, abriu aos nossos sentidos os horizontes límpidos e claros deste mundo e de um outro ainda mais belo.
A tua doutrina torna a nossa vida digna de ser vivida. Até mesmo no sacrifício e na dor. Pois nos ensinaste o canto da vitória, que podemos erguer, em qualquer oportunidade, quando vencemos ou quando somos derrotados nas batalhas que empreendemos, quando estamos alegres ou tristes; quando sofremos ou quando gozamos os prazeres justos, quando somos pobres ou ricos, desprezados ou cortejados, humilhados ou glorificados. Pois o canto da vitória, que nos ensinaste a cantar, vem do fundo da consciência pela certeza do dever cumprido e do bem que procuramos fazer. Sim; a vida, depois de Ti, tornou-se digna de ser vivida pelos homens.
A sociedade pagã, sob a égide dos deuses abstrusos e inconsequentes, estava cheia de suicídios. Até os mais sábios, como Sêneca, abriam as veias procurando a morte. Mas a sociedade cristã, a sociedade que fundaste, encheu-se de mártires; e enquanto o sangue de Sêneca nada produziu, porque foi derramado num gesto de desprezo pela vida, o teu sangue e o dos que morreram por Ti produziram sucessivas gerações de homens corajosos, porque tanto o Teu, como o dos teus discípulos foram derramados em louvor e pela exaltação da própria vida, daquela vida que só se vive na tua República de Justos.
Os deuses do paganismo desapareceram na História. Um só Deus ficou, o Deus Verdadeiro, de que és parte, como parte nos és também, por nossa glória e maior preço do que somos.
No entanto, no transcurso dos séculos, fomos nos esquecendo de Ti. O demônio do orgulho falou aos nossos ouvidos. Julgamo-nos sábios, por nós mesmos, e tornamo-nos estultos desde que nos convencemos da possibilidade de resolver nossos problemas terrenos, sem a tua Presença em cada ato de nossa vida.
Como o filho pródigo, saímos da tua casa. Longe de Ti, sentimos, desde o século do Renascimento, a necessidade de novos deuses. Primeiro, desenterramos nos terrenos das cidades antigas as imagens de mármore em que os escultores gregos e romanos haviam simbolizado as divindades olímpicas. Mas verificamos, desde logo, que essas estátuas só serviam como simples modelo aos artistas, pois eram frias como a própria pedra em que tinham sido cinzeladas e nada mais falavam senão o discurso do silêncio em que exprimiam um período ultrapassado da História. Depois, fomos buscar nos pergaminhos vetustos que os monges da Idade Média haviam decifrado, os fundamentos de uma nova filosofia. E todas as elucubrações de Tales, de Heráclito, de Anaxágoras, de Pitágoras, de Xenófanes, de Demócrito, de Protágoras, foram desenterradas, como as estátuas, e trouxeram inquietação aos nossos espíritos.
Começamos, desde então, a criar novos deuses. Não temos feito outra coisa senão povoar um novo Olimpo de personagens abstratas completamente alheias às realidades humanas.
Criamos para substituir Minerva, o Racionalismo; para substituir Mercúrio, o Experimentalismo; para substituir Afrodite, o Panssexualismo; para substituir Vulcano, o Trabalho; para substituir os oráculos, o Sufrágio Universal.
Numerosos outros deuses foram criados pelo Homem nestes últimos séculos e chegamos ao século XX à plenitude de um politeísmo que desorienta todos os espíritos e dissemina por todo o mundo as dissensões catastróficas.
Deuses do novo Olimpo, já os configuramos em imagens como o fizera o mundo antigo. A deusa República aparece como uma mulher de barrete frígio; a deusa Liberdade, erguendo o seu facho aceso, domina o porto de Nova Iorque e a imaginação dos homens do nosso tempo; o deus Comércio reproduz a própria estátua de Mercúrio com o seu caduceu. Outros deuses também surgiram: o deus Máquina dominador do século; a deusa Democracia, como Astartéia, cingindo as mais variadas roupagens, que são os adjetivos com que se veste para cada idólatra, apresentando-se como Democracia Liberal, ora como Democracia Popular, ora como Democracia Cristã, ora como Social-Democracia. Mas há outras divindades: A Economia, a Finança, a Previdência, a Luta de Classe, a Raça, a Ciência, a Técnica, sobretudo a Técnica, filha primogênita da Máquina e transformadora de homens em parafusos e engrenagens. Outros deuses, ainda possuem templos em nosso século: o Socialismo, o Capitalismo, o Nacionalismo, o Internacionalismo, o Estado e, finalmente, o deus ou deusa ONU, soberano ou soberana do mundo, dissílabo que faz lembrar Ámon, Áton, Bel, Ormuz, e que parece — última criação do panteísmo político do nosso tempo — como qualquer outra coisa semelhante à assembleia dos deuses ou do tribunal do Radamanto, no reino de Plutão.
Sob o domínio de todas essas abstrações, erigidas em divindades pela nossa loucura, nós, os trabalhadores — que somos seres humanos com necessidades físicas e necessidades, mais fortes ainda, espirituais; nós, que nos sentimos cada vez mais mecanizados, mais vazios, mais automatizados pela deusa Técnica; que somos explorados em nossas angústias pelo Deus Socialismo, pela deusa Demagogia, que nos pretendem levar, com ilusões e mentiras, do reino cruel do Capitalismo ao reino sanguinário e esmagador do Comunismo; nós, a quem os oráculos e as sibilas modernas que se chamam Imprensa, Livro, Rádio e Televisão, nos desorientam com mil ideias e augúrios, soprando, sobre as multidões em que nos aglomeramos, os ventos da Discórdia; nós, que andamos jogados, de um lado para outro, formando as ondas revoltas dos comícios eleitorais e das greves, ora pela exploração dos partidos, ora pelos preparadores de revoluções — nós aqui estamos, Senhor, diante de Ti, para dizer-Te que não acreditamos em mais nada senão em Ti.
Nunca ouvimos dizer que foste algum dia pregar e ensinar à beira do mar-oceano, de vagas encapeladas e gritos selvagens de espumas nas pedras; mas sabemos que doutrinaste à beira do lago, porque a sua água é tranquila e o seu leve rumor em surdina é propício à meditação e à bondade. O lago oferece, ainda, a noção dos limites. Na sua face espelha o azul do céu nos dias de sol e o próprio sol; e quando chega a noite, brilham nas águas mansas as estrelas, como mensagens do Infinito à consciência do Limitado. Também ensinaste na montanha, onde há silêncio e grandeza e de onde se descortina a paisagem total.
Dá-nos, pois, a humildade, a serenidade e a limpidez do lago; a altitude e a meditação da montanha. Para que, como outrora, possamos hoje conhecer as verdades eternas, sem as quais não daremos solução aos nossos problemas neste mundo.
Livra-nos dos monstros chamados Capitalismo e Socialismo, pois ambos querem nos levar ao inferno do Comunismo. Livra-nos de Simão o Mágico, que nos promete milagres para que nos afastemos de Ti. Ele fala hoje pela boca da Demagogia e está presente nos discursos hipócritas dos agitadores. Dá-nos a tua Justiça, baseada na Caridade que faz os homens irmãos e ensina, mais uma vez, os homens a nascerem de novo, porque somente com Homens Novos poderemos viver Vida Nova, segundo a qual cada trabalhador e sua família tenham materialmente o de que precisam para o corpo e possam ter o que espiritualmente precisam para a alma, no cumprimento dos seus deveres e no exercício dos seus direitos.
Plínio Salgado
Jornal A Marcha, 1º de maio de 1953