Ovídio conta no livro Metamorfose sobre um rei Frígio chamado Midas. Midas hospedou um amigo bêbado de Baco (ou Dionísio); então Dionísio lhe concedeu um desejo, e Midas desejou um poder. O poder era a capacidade de transformar tudo que tocasse em ouro. O rei, feliz com o poder que tinha, tocou uma flor e a transformou em ouro. Voltando para casa feliz, querendo comemorar, ordenou um banquete e chamou a filha; tocou a comida, que virou ouro, tocou a filha, e ela também se transformou em ouro.

O poema esconde a filosofia do autor. Ovídio poetizou a Burguesia; Plínio sistematizou Midas. O mundo foi amaldiçoado com o capitalismo: o mundo desenvolveu a capacidade, no mínimo diabólica, de transformar tudo em ouro, tudo em dinheiro, em comércio, ou “capital” se for melhor expressão, e na linguagem do Chefe, “transação”. 

Já é comum, na linguagem, dizer-se que transmitir uma ideia é uma “venda”. Ouvi homens dizerem que os grandes mestres (Platão, Agostinho, Cícero) eram “vendedores”; vi homens falarem que Jesus “soube vender a ideia”. Quanta ignorância: eles não eram comerciantes, eram samaritanos; não compramos nada, recebemos uma doação.

Introdução à Cosmovisão


“Tudo se rebela contra aquele que quer criar uma ordem nova. Todos os preconceitos se levantam. Tudo o que há de negativo no passado se mobiliza. Todos os comodismos dos satisfeitos se insurgem. Todos os medíocres conjuram para aniquilar aquêle que vai interferir na marcha normal dos fatos” [1].

Antes de tudo, quero explicar um pouco da cosmovisão de Plínio, principalmente como ela é exposta em “Psicologia da Revolução”. Também usarei o livro “Finalidades do Mundo: A Filosofia como Atividade Permanente”, de Farias Brito.

Tanto para Plínio quanto para Farias, o homem tem uma conexão com a natureza, se diferenciando por sua capacidade de perfeição e modificação, tanto de si mesmo, quanto da natureza. Plínio dirá: 

“O interesse de afirmação do Homem é que se opõe ao desinteresse das energias cegas da natureza. O Homem é essencialmente modificador e o âmbito de sua ação abrange não só o mundo exterior, mas o seu próprio mundo interior” [2]

Sempre afirma o Chefe a “responsabilidade” que o homem tem com a natureza, e que a natureza tem com o homem. O homem como que tem a obrigação de alterar a natureza de acordo com seus princípios morais; e a natureza tem a obrigação de dar as armas para o homem fazer isso — essa obrigação do homem é exposta por Farias com a finalidade prática da filosofia, que é criar a moral, e a finalidade da própria moral, que é viver de acordo com convicções, não se rendendo às conveniências (tanto políticas, como naturais) [3]. Não há palavras melhores do que as do próprio Chefe: 

“O Homem é centro de movimentos, ao mesmo tempo que é parte de um sistema de movimentos. Como centro de movimentos, deve, forçosamente, gravitar, em torno dele, uma série de coisas que lhe são atributos, direitos; como parte de um sistema geral, o Homem tem de gravitar para um centro que, por sua vez, lhe impõe deveres em relação aos componentes daquele sistema” [4].

Essa ideia de Homem e Natureza é essencial para entender a visão de Plínio sobre os processos revolucionários. Para o pensador integralista, as revoluções não são necessariamente boas, nem ruins; elas simplesmente ocorrem, como necessidade do espírito. Ele expõe da seguinte forma: “Não condeno nem louvo as revoluções. Aceito-as, considerando-as uma necessidade tão permanente nos povos como todos os movimentos na natureza. […] O progresso do Espírito Humano realiza-se ao ritmo das revoluções. Esta afirmativa não exclui a concepção finalista da Sociedade e do Estado: toma, entretanto, as civilizações como fisionomias em perpétua mobilidade” [5]. Nesse rumo, em que se entende a civilização como uma fisionomia em mobilidade, pode-se pensar em “matéria e espírito”, “fato e ideia”, a dualidade comum entre o concreto e o abstrato (que não se excluem, nem corrompem um ao outro).

A “alma” da civilização é a ideia, a mente do homem que interfere no fato; a “matéria” é o que está acontecendo, contexto ou fato-histórico:

“De um lado, perpetuando a evolução das Espécies, determinando o crescimento social, multiplicando os fatos objetivos da história; as energias cegas da Matéria e da Força, conjugando-se em renovados efeitos; de outro lado, prolongando indefinidamente o rumo da Civilização no que esta tem de ético, especulativo, artístico ou religioso, as energias poderosas do Espírito, exprimindo-se em Afirmação e em Negação, criando as dúvidas fecundas e as certezas triunfais” [6]

E diz Farias:

“Assim, quem tivesse em vista apresentar o plano de uma concepção geral da sociedade deveria abraçar, em seu conjunto, não somente a ação da política, mas também a ação da filosofia, estudando, de um lado, o corpo social propriamente dito, isto é, a máquina; e, de outro lado, as produções do espírito, isto é, a força motora dessa máquina” [7].

E Plínio: 

“A Humanidade caminha segundo esses dois planos: o primeiro coletivo, global, movimento de massa, rumos inconscientes de povos; o segundo individual, singular, atitude isolada do Homem, desferindo impulsos modificadores” [8].

Tendo em mente essa concepção de Farias e de Plínio, em que o universo é uma relação de Homem e Natureza; e tendo essa concepção em que a civilização é separada em Matéria e Espírito (ou quaisquer outros conceitos que expressem um lado concreto e um lado abstrato), podemos começar a exposição do problema do Capitalismo Liberal. Esse problema será abordado em duas partes: a primeira de maneira mais política-sociológica; a segunda de maneira mais religiosa, ou melhor, espiritualista.

Burguesismo e Midas: O Homem e a Sociedade


“Não vejo ainda a vida por esse prisma. Compreendo que um homem sacrifique-se por qualquer motivo nobre, para fazer a felicidade de uma mulher, ou de entes que lhe são caros; mas se o fizer por um preço em moeda, não é sacrifício, mas tráfico” [9].

Para expor melhor o problema do Capitalismo Liberal, devo logo explicar a significação aqui usada nesses dois conceitos. Com “capitalismo”, falo estritamente de um absolutismo econômico; e com “liberalismo”, falo de um relativismo ideológico. A ideia de Plínio sobre esses dois conceitos (ou duas ideias), que juntos destruíram toda a capacidade harmônica da civilização, é exposta no tópico “Centralização Econômica e Descentralização Intelectual” do seu livro “Psicologia da Revolução”, e ele diz sobre esse problema:

“A quebra do sentido de unidade espiritual determinou, no transcurso do último século a fragmentação da Inteligência Humana e seu consequente desprestígio em face de uma unidade econômica, cada vez maior. A crise contemporânea provém exatamente da discordância dos dois sistemas”, e ele a separa em dois tópicos: “1º) — as concepções filosóficas, éticas, jurídicas e estéticas, tendendo a uma descentralização fragmentária, à multiplicação de feudos mentais em contínua destruição mútua e em subdivisões progressivas; 2º) — as forças econômicas agregando-se progressivamente, submetendo-se a crescente uniformidade de ritmo, moldando-se a ‘standards’ universalizantes e objetivando uma perfeita unidade” [10].

Uma dessas revoluções, ou várias delas unidas, calharam no que se chama “Burguesismo” ou “Espírito Burguês”, que tem como palco o Capitalismo Liberal; ou talvez, se for melhor modo de expressar, uma revolução que foi guiada pelo Espírito Burguês, calhou no Capitalismo Liberal — o Espírito Burguês seria a Ideia, a parte abstrata de nossa situação; e o Capitalismo Liberal seria o Fato, a parte concreta em que todos nós estamos incluídos. É importante a conjugação dos termos “Espírito” e “Burguês” em conjunto, pois Plínio expõe logo de início que o “Burguesismo” é um estado de espírito, e não um estado social. É um estado de Espírito, pois é o domínio claro da alma concupiscente, visando apenas o prazer materialista, se prendendo ao mundo. Sendo um estado de espírito, todos os homens estão propícios a esse estado. O Chefe diz: 

“Insistimos em dizer: o ‘espírito burguês’ não se restringe à classe dominante; estende-se dissemina-se por todas as categorias sociais, porque exprime a geral sensualidade que impera em nosso tempo” [11].

Não tendo bens materiais para comercializar, o homem comercializa tudo. Assim como Midas transforma tudo em ouro, o homem moderno tudo transforma em comércio. Não tendo um sofá velho para vender, o homem vende sua fé; não tendo um aspirador para trocar em uma TV, o homem troca sua dignidade; não tendo dinheiro para livros, ele logo vende a inteligência que tem e troca por algum objeto da última moda. E nesse raciocínio, Plínio fala sobre aqueles que vendem a imagem da religião, os que usam a religião como roupagem social:

“…a classificação de duas categorias de católicos: os simplesmente católicos e os ‘católicos práticos’. […] começaram do mesmo modo a coexistir ‘maometanos práticos’, ‘budistas práticos’, ‘xintoístas práticos’ e os simplesmente maometanos, budistas ou xintoístas. Entendemos por ‘práticos’ os que creem numa religião e cumprem seus mandamentos, e por ‘não práticos’, ou ‘simples’, os que creem mas não cumprem o que lhes ordena o seu credo. Esses ‘não práticos’ ou ‘simples’ comparecem eventualmente a atos religiosos e às vezes transformam-se em ‘praticantes’, em caso de doença grave ou perigo de morte” [12].

Dando um lugar único para a crítica à falsa moral, Plínio posteriormente faz uma crítica sobre religiosos liberais, que relativizam a moral e os dogmas; os chama de “pseudo-moralistas”, com uma moral liberal que acomoda-se com o tempo, como se a verdade fosse mutável. Ele escreve: 

“Não faltam pseudo-moralistas — desses que contestam o valor eterno dos princípios morais — a proclamar que as regras das ações devem modificar-se com o avanço da ciência e os resultados do experimentalismo; e, baseando-se nas hipóteses vigentes como certezas a longo ou curto prazo, fazem-se arautos da licenciosidade dos costumes, que a burguesia aceita porque seu espírito é acomodatício” [13].

Ainda nesse mesmo rumo de falsos laços ou “casacos” que só servem para facilitar transações, posso expor mais uma das concepções achadas sobre vestimenta social; dessa vez, sobre casamento:

“Então, esses infelizes procuram, na sucessividade dos prazeres, o sucedâneo à simultaneidade; vem daí a constante mudança do objetivo sexual, determinando ligações e desligações, casamentos e divórcios, o que constitui nova tragédia quando ambas as partes, homem e mulher, não estão concordes na separação amigável. Tais aventuras, muitas vezes, obedecem ao impulso de um capricho ou de um interesse inconfessável, e a vida em comum dos cônjuges é secretamente atormentada pelos receios do que o capricho momentâneo que determinou a união, seja substituído por outro capricho, que determinará a desunião. E, no meio de tudo isso, os filhos são o que menos importa…” [14].

Plínio fará também uma crítica ao comunismo, que tem como causa o espírito burguês: ele argumenta que o comunismo é uma resposta à opressão capitalista liberal. Ele diz: 

“Como adversário leal e franco da doutrina marxista, ouso dizer que o comunismo não é o mal do século, porque antes dele existe um outro mal que ele se origina. Esse mal é o espírito burguês. Se desejamos combater o comunismo, que se ergue contra a sociedade burguesa, a nossa primeira atitude será a de combate contra a concepção de vida da burguesia, a qual, por ser injusta e cruel, gera revoltas por ela mesma semeadas com os princípios materialistas, ostensivos ou latentes, dos usufrutuários dos bens terrenos de nosso tempo. […] Eles [os comunistas] representam, inicialmente, uma atitude de revolta contra os que pregam o espiritualismo e vivem o materialismo; e, portanto, abstraindo o seu erro enorme e catastrófico, não podemos deixar de olhá-los como agentes misteriosos da lógica divina, apresentando-nos, por antecipação, o panorama das consequências fatais a que deverá chegar o epicurismo burguês” [15].

“Como adversário leal e franco da doutrina marxista, ouso dizer que o comunismo não é o mal do século”

O toque de Midas vai tão distante, porém, que até o marxismo foi comercializado; não só no âmbito material e aparente, mas o próprio marxismo como ideologia é comercial, no sentido de que é aceitável e pode ajudar como roupagem social, pode ajudar a ter contatos, a juntar “capital” ou fazer “transações”. Não estou supondo um “marxismo cultural”, como diz a nova direita: na verdade, se o marxismo tomou a academia, então o capitalismo liberal falhou; como imagino que nenhum capitalista liberal admitirá isso, eu coloco que existe muito mais, dentro da academia, antes um “liberalismo cultural” repleto de indiferentismo e materialismo, travestido de conservadorismo e religião, do que um “marxismo cultural”. Conspiração ou não, suponho que os próprios burgueses liberais financiem essas ideias marxistas reais, e as ideias marxistas falsas, como forma de espantalho, que nos tira o foco do inimigo real, a burguesia:

“Desde o manifesto de Marx, em 1848, os trabalhadores de todo o mundo começaram a adquirir consciência de classe e a unir-se. Diante do crescimento das organizações sindicais e da larga propaganda anti-capitalista, a burguesia, sempre acomodatícia, tratou de aderir ao movimento e de dirigi-lo. Era mais uma transação, a qual deu resultados, pois o socialismo materialista, ou melhor, o socialismo científico de Marx, passou a ser dirigido e chefiado pelos políticos burgueses” [16].

Além disso, podemos ver também uma certa influência de Farias Brito, em algo que Plínio descreve como “comodismo”. O comodismo é um efeito do espírito burguês nos homens modernos (já naquela época), gerando a atitude de se vender, ou melhor dizendo, se acomodar ao fato. Claro que, às vezes, o contexto é bom, mesmo que isso tire o mérito da moral [17], mas a crítica se relaciona aos que são falsos para com o mundo — que se mostram como religiosos, mas moldam a religião quando lhe convém; ou que se mostram como idealizadores, mas deturpam a ideologia quando convém. Nisso, pegamos um âmbito moral, em que diz Farias:

“Com efeito, a moral é o conjunto dos princípios pelos quais deve o homem regular sua conduta. De dois modos pode o homem proceder na sociedade: de conformidade com suas convicções ou de conformidade com suas conveniências. […] Pode-se, pois, estabelecer como regra que o grau da moralidade está na razão inversa do sacrifício das convicções a conveniências. Assim, aquele que nunca sacrifica suas convicções às conveniências é um homem perfeito” [18].

E Plínio diz:

“Mas o espírito de transação da burguesia vai mais logne, porque entre os que, na religião, se dizem ‘práticos’, encontramos ainda duas categorias: a dos que vivem em contradição com a sua própria prática religiosa, acomodando cá fora, na rua, na sociedade, na política, no comércio, no próprio convívio doméstico, a sua maleavel consciência, de acordo com os seus interesses materiais, ou as suas disfarçadas ou até despercebidas paixões” [19].

Um dos piores sintomas do Espírito Burguês é a fraqueza intelectual e física é a submissão do homem diante da conveniência. Porém, dessa vez, a conveniência física. No capítulo intitulado “Crise de Adaptação”, do livro “Espírito da Burguesia”, Plínio expõe os problemas modernos derivados dos “avanços tecnológicos”, com a problemática (talvez dialética) da ideia de “progresso” para o homem moderno. O homem moderno, dominado pelo materialismo, esquece do que tem de mais nobre: a alma; e por consequência, busca superioridade na matéria:

“O progresso, por conseguinte, segundo o critério materialista dominante em nosso tempo, não passa de uma ampliação do poder humano em seu crescente domínio da natureza exterior. Da marcha a pé à marcha a cavalo; da marcha a cavalo à viagem num veículo de rodas: do carro à tração animal ao impulsionado pelo vapor, pelo motor à explosão, pela eletricidade, o homem ampliou seu poder de andar, de vencer distâncias. […] utilizando-me do avião, poupo horas” [20].

Nessa ideia, o homem acha que vence a matéria, mas sempre fracassa — “a matéria é superior”, dizem, enquanto ativistas do materialismo; e “somos um mísero grão”, enquanto ativistas do agnosticismo; mas não podem ignorar a busca por mudança e superioridade do homem: então, buscam superar o Espaço e o Tempo, os pais de tudo que é material. O fim é óbvio: eles falham, pois, como admitem que a matéria enquanto natureza supera a matéria enquanto homem, buscam a vitória onde nunca poderão vencer, e admitem derrota onde são claramente superiores. “A vida humana mecanizou-se sucessivamente e de tal forma que a maquina passou a constituir uma segunda natureza do homem” [21]. E prossegue Plínio:

“O homem do século XX [e pior ainda no século XXI] é, pois, um ser de muletas. Muletas suplementares, mas muletas. […] Tudo isso amplia o nosso poder, mas nos torna aleijados; e só percebemos a nossa insuficiência, essa insuficiência criada por nós mesmos, quando nos faltam esses objetos” [22].

Nós, homens, fizemos a máquina para nos ajudar, potencializar nossa força, audição, visão, as expressões dos nossos sentidos. Mas em consequência, perdemos o essencial: nossa alma. Os homens que trabalham em indústrias são selecionados cada um para um parafuso, e, por fim, serão (e já estão sendo) substituídos por máquinas mais rápidas em colocar parafusos. Mas houve um tempo em que o homem fazia as coisas com a alma e para a alma (às vezes para Deus) — não que o corpo fosse ignorado, mas era o instrumento da alma. O problema começa “[…] desde a gradativa extinção do artesanato mediante a substituição do trabalho espiritualizado pela brutalidade da produção em série” [23]. Em resumo:

“[…] o progresso, tal como os homens materialistas do nosso século o tomam, não passa de um aumento de eficiência física proporcional a uma diminuição de esforço” [24].

Disso, podemos colocar algumas coisas que definem a sociedade infectada pelo burguesismo: 

1º) Materialismo, em que o homem se esquece do Espírito; 

2º) Concupiscência, em que o homem está imerso nos prazeres materiais e vira escravo de suas paixões; 

3º) Comodismo, em que o homem perverte a própria moral quando conveniente; 

4º) Falso Progresso, em que o homem se submete à matéria, mas vive buscando superar o insuperável. 

Cremos que esses quatros fatores resumem os sintomas do Espírito Burguês.

Burguesismo e Midas: O Homem e Deus

“Eu, não quero agora, nem vos digo que não vendais a vossa alma, porque sei que a haveis de vender; só vos peço que, quando venderdes, que a vendais a peso. Pesai primeiro o que é uma alma, pesai primeiro o que vale, e o que custou, e depois eu vos dou licença que a vendais embora” [25].

Como passarei para um âmbito mais espiritualista, gostaria de abordar algumas questões sobre a alma, e também sobre Deus. Primeiro, sobre a alma, que se demonstra pelo fato de que o homem, diferente do que é puramente material, age, não por trações, e nem por impulsos exteriores [26]; sendo assim, se deduz que há algo dentro do homem que o move. Esse algo, chamamos de alma; e diferente da alma animalesca, esta é dotada da razão, sendo autônoma e agindo separadamente na natureza por si mesma. Como também vemos em Plínio quando fala sobre “o interesse de afirmação do Homem” ser o que “[…] se opõe ao desinteresse das energias cegas da natureza”, e assim criando o que chamamos de “arte” [27].

Se a alma existe, se a alma é o que produz novas coisas e reorganiza o mundo, é inegável que devemos nos importar com ela acima de tudo. Se queremos um Estado organizado, se queremos uma ordem material, devemos antes nos ordenar devidamente no âmbito espiritual.

“Qualquer pessoa, após uma reflexão, se dá conta de que a beleza aparente é sinal de mistérios sublimes. […] As luzes materiais são imagens da copiosa efusão das luzes imateriais” [28].

Mas se a alma existe e precisa ser organizada, onde ela encontra organização? Onde nossa alma encontrará repouso? Ou melhor, onde a alma encontra a perfeição para se inspirar? Em Deus, e não poderia ser diferente.

Quanto à argumentação da existência de Deus, não quero ir muito longe, pois parece óbvio demais para perder tempo argumentando. Basta dizer que tudo vem de algo; e esse algo tem que ser perfeito e bom, encerrar toda a perfeição, e ser a suma bondade: ser Perfeito pois encerra todas as perfeições, já que “[…] toda a perfeição do efeito deve existir na causa eficiente” [29]; ser Bom, enquanto além de perfeito seja desejável, já que “[…] como um ser é perfeito na medida em que é atual, é claro que é bom na medida em que é ser, pois o ser é a atualidade das coisas […] mas, o bem, acrescenta à noção de ser a de desejável” [30]. Assim, temos em mente que: 1º) A alma existe; 2º) Deus existe; 3º) Deus é Perfeito e Bom; e algo muito importante para prosseguirmos: 4º) Deus é desejável.

Tendo isso como pretexto, podemos já falar sobre o fato de que isso não é uma abordagem religiosa, mas sim espiritualista. O que chamamos de Frente Ampla Espiritualista (que Plínio fundamentou na doutrina social católica) é a união de pessoas que compartilham de uma essência comum em credos diferentes. O fato de que eu, outros integralistas e até os próprios fundadores utilizem muitas fontes católicas, não vem de uma ideia de imposição, mas de uma ideia de influência; se um santo católico disser “não mate”, os credos não-católicos deverão discordar? Há um mínimo ético, em que se podem irmanar os adeptos de morais que não são totalmente compatíveis. Cito isso não pensando em outros religiosos, mas pensando nos agnósticos e ateístas, que podem perverter tudo; os religiosos, por serem religiosos e espiritualistas, entendem o que eu quero dizer.

Mas Plínio lamenta: “Assim, dividido, subdividido, fracionado, esfacelado, o mundo dos homens espiritualistas não constitui uma força capaz de barrar, com a muralha de uma fé comum, o dilúvio moral que desaba sobre a humanidade, destruindo todas as categorias de valores em que assenta a civilização inspirada pela crença em Deus e nos destinos eternos do Homem” [31]; mas, antes dessa lamentação, ele expõe essas “categorias de valores” da seguinte forma:

“… já não dizemos sob o aspecto das diferenciações dogmáticas, mas sob o aspecto das conclusões sociológicas e jurídicas que se embasam nos pontos de fé comuns, como sejam a crença em Deus e nos destinos sobrenaturais do homem, norteados pelas exigências da lei expressa no Decálogo” [32].

E embasa isso na doutrina da Igreja, como ele mesmo cita:

“A necessidade de uma união de todos os que creem em Deus e nos destinos supraterrenos do homem, levou o Santo Padre Pio IX a escrever em duas encíclicas (Divini Redemptoris e Caritate Christi), veemente apelos a todos os homens espiritualistas do mundo (mesmo os não-cristãos) para que formem a frente fraterna e activa contra as terríveis ameaças do materialismo avassalador” [33].

Prossigamos.

Como dito anteriormente, há uma necessidade de o homem se elevar a Deus, pois: sendo Perfeito, é necessário; sendo Bom, é desejável. Assim, o Integralismo vai adotar a ideia, já expressa na Cosmovisão, de que o homem tem obrigações com Deus, como Plínio diz:

“O outro conceito [além do materialista] é o espiritualista, isto é, o que considera a vida humana como um fenômeno transitório, condicionando uma aspiração eterna, superior. Para os que adotam esse conceito, existe Deus, existe a Alma, e, como consequência natural, tudo se relaciona com essas ideias” [34].

“Quando tem predominado o conceito materialista, o padrão das civilizações assenta sobre os valores materiais, isto é, são mais estimados, mais considerados e respeitados: os poderosos, os ricos, os audazes e astutos, enfim os que melhor atingiram as situações mais agradáveis e fortes, ao passo de que se relegam para um plano inferior as expressões intelectuais e morais, nada valendo o pobre, o trabalhador honesto, porém não vitorioso, o artista, o criador de expressões espirituais” [35]

Como já dito, todos os que organizam a sociedade são jogados para escanteio; pois a Ordem sempre se inicia no espírito, e em um mundo materialista, não há lugar para o espírito, logo, não há lugar para a Ordem. Mas no que agora foi citado, vemos a importância que Plínio dá aos artistas, “criadores de expressões espirituais”: ou seja, um valor para a beleza, para a contemplação, que tanto é necessária para a elevação espiritual. 

A Psique Burguesa

Discorramos agora sobre isto: a beleza. Mas para nos elevarmos a Deus, e não cairmos nesse materialismo fútil e não nos esquecermos do Bem, do Belo, e da Verdade, devemos nos elevar não só psicologicamente, mas ontologicamente — devemos nos entregar inteiramente, ou melhor dizendo, integralmente, às virtudes:

“Pseudo-Dionísio descreve a catarse ontologicamente, não psicologicamente. Esta é uma liberação de qualquer tipo de mistura — isto é, uma ‘simplificação’ da alma ou, em outras palavras, ‘uma reunião da alma’, uma ‘reunião uniforme concentração’, uma ‘entrada em si mesmo’, uma abstração de qualquer cognição, de todas as imagens, perceptíveis e intelectuais. Isso também é um certo calmante da alma — reconhecemos Deus apenas quando o espírito está em descanso…” [36].

O problema, agora, passa de uma questão espiritual para um âmbito psicológico e sociológico, envolvendo uma pressão sofrida exteriormente.

A mente humana, focada no que é material, no prazer mundano, no que é puramente sensível, no que está abaixo da nossa dignidade racional, não consegue contemplar o céu, não contempla o alto, não contempla Deus; o homem se esquece da responsabilidade que tem com os bens imateriais, e cria uma obrigação (ou escravidão) diante dos bens materiais. 

Basílio de Cesareia

Basílio diz:

“Não engulamos o anzol escondido numa isca e, em seguida, em parte por nossa vontade e em parte pela violência da necessidade, sejamos acorrentados aos objetos sensíveis…” [37].

São sábias palavras de Basílio — que apesar de exercer sua autoridade de santo somente sobre os católicos romanos e ortodoxos, era aclamado e gratificado até mesmo entre os judeus e pagãos de sua época (como diz Gregório Nazianzeno em sua Oratio XLIII). Seguindo ainda nesse raciocínio de Basílio, vemos algo parecido em Plínio. Ele diz:

“Em suma: os ricos vivem no Reino dos Homens, e os pobres vivem no Reino de Deus; os ricos são escravos e os pobres são livres. Vivem os primeiros sujeitos às paixões humanas; vivem os segundos entregues à misericórdia do Criador. Os ricos raciocinam segundo os interesses dos seus negócios, e os pobres raciocinam segundo os ideais puros da Verdade e da Justiça” [38].

Eles ressaltam o mesmo problema que o rico sofre: a pressão exercida pelos bens exercem. Basílio diz “violência da necessidade”, Plínio diz “interesses dos seus negócios”; “negócios” esses que são pressão constante nos ricos: “…ao passo que o rico, pelos haveres que defende, sofre influência de muitos, ou de alguns capazes de o prejudicar. Desta sorte, o pobre faz e fala o que quer, enquanto o rico faz e fala o que os outros querem” [39].

Para finalizar, posso citar alguns escritos que seguem o mesmo rumo de união espiritual. O grande autor cristão (então ainda anglicano) G. K. Chesterton, falando sobre diferentes espiritualistas, diz:

“Não só um credo une homens, como também uma diferença de credo pode uni-los, contanto que seja uma diferença clara. As fronteiras unem. Muitos muçulmanos magnânimos e muitos nobres cruzados estiveram bem mais próximos uns dos outros — pois eram ambos dogmatistas — do que quaisquer dois agnósticos sem lar lado a lado num banco da capela do Sr. Campbell. ‘Digo que Deus é Uno’ e ‘digo que Deus é Uno, mas também Trino’ é apenas o começo de uma bela amizade contenciosa e varonil. Mas nossa época está prestes a transformar esses credos em tendências” [40].

São Francisco de Assis, tão admirado no meio católico, espírita, afro-brasileiro e até protestante do Brasil, pode nos dar o exemplo dessa grande luta comum contra os valores desviados do materialismo, como nas palavras de Royo Marín:

“[São Francisco] não podia tolerar em sua própria vida ou na de seus frades o menor apego às coisas materiais. Costumava chamar a pobreza de sua senhora, mãe e esposa. […] São Francisco estava sempre transbordando de alegria, até o ponto de expressá-la muitas vezes de forma tão veemente que causava a admiração de todos os que contemplavam” [41].

Para fechar a ideia de união entre homens de tradições religiosas diferentes, gostaria de citar um dos primeiros homens a propô-la: Clemente de Alexandria. O homem que uniu a tradição grega (Platão e Homero), com o fundamento religioso e filosófico dos antecessores de Cristo (Velho Testamento e Fílon de Alexandria), e o novo advento do Cristianismo (Novo Testamento e padres apostólicos). Esse tão sábio homem diz:

“É preciso se servir dos preceitos para regrar as ações, mas para remediar as paixões da alma existe a via das consolações. […] Chama-se exortação esse discurso pelo qual o homem põe-se a procurar as vias da sua salvação. A religião é uma espécie de exortação, além de um culto piedoso que se rende ao bom Deus. Trata-se, contudo, de uma instrução perpétua para nos fazer aprender a levar uma vida correta, inspirando-nos a desejar ardentemente a vida futura” [42].

Não vejo como um religioso possa ignorar essas palavras, ou melhor, essas exortações, de tão admiráveis mestres.

Por fim, resumindo uma análise geral: devemos, por um mundo melhor, por uma esperança do povo, pela nossa cultura, pela nossa nação, pela nossa fé, por Deus e pela nossa alma, lutar contra a desesperança do materialismo; esse materialismo que, na sua angústia maior, se torna dogmático, e vira uma religião; em que o homem, que antes adorava o Perfeito, passa a adorar os vermes da terra ou o vazio que encontra em si mesmo, pois sabe que vai ser submetido aos dois: aos vermes, e ao eterno nada. Ser contra o Capitalismo Liberal e seu materialismo, antes de ser contra a silhueta de um Comunismo, já que este é apenas efeito daquele; contra a não-verdade, antes da anti-verdade.

“São as contradições do regime capitalista, dirá Marx. É a ausência de Cristo nas almas, diremos nós.” [43]

Athos Fabri
Ipatinga Σ MG.

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Referências


[1] SALGADO, Plínio. Psicologia da Revolução 4º Edição. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1933. pp. 41.

[2] Idem. pp. 22.

[3] BRITO, Farias. Finalidade do Mundo: Tomo I. Brasilia: Edições Do Senado Federal, 2012. pp. 4.

[4] SALGADO, Plínio. Psicologia da Revolução 4º Edição. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1933. pp. 23.

[5] Idem. pp. 13.

[6] Idem. pp. 16.

[7] BRITO, Farias. Finalidade do Mundo: Tomo I. Brasilia: Edições Do Senado Federal, 2012. pp. 3.

[8] SALGADO, Plínio. Psicologia da Revolução 4º Edição. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1933. pp. 16.

[9] ALENCAR, José de. Senhora. Jandira, SP: Principis, 2019. pp. 43.

[10] Idem. pp. 36.

[11] SALGADO, Plínio. Espírito da burguesia. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1951. pp. 41-42.

[12] Idem. pp. 26-27.

[13] Idem. pp. 49-50.

[14] Idem. pp. 47-48.

[15] Idem. pp. 10, 15.

[16] Idem. pp. 29.

[17] BRITO, Farias. Finalidade do Mundo: Tomo I. Brasilia: Edições Do Senado Federal, 2012. pp. 4.

[18] Idem. pp. 3.

[19] SALGADO, Plínio. Espírito da burguesia. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira,1951. pp. 27.

[20] Idem. pp. 136.

[21] Idem. pp. 137.

[22] Idem. pp. 138-139.

[23] Idem. pp. 141.

[24] Idem. pp. 136.

[25] VIEIRA, Padre Antônio. Sermões Escolhidos. Jandira, SP: Principis, 2019. pp. 11.

[26] NEOCESAREIA, Gregorio Taumaturgo de. Ante Nicene Fathers: On the Subject of the Soul. Buffalo, NY: Christian Literature Publishing Co., 1886. pp. 54.

[27] Idem. pp. 56.

[28] AREOPAGITA, Pseudo-Dionísio. A Hierarquia Celeste. Campinas, SP: Ecclesia, 2019. pp. 9.

[29] AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Volume I: La Pars. Tradução de Alexandre Correia. Campinas, SP: Ecclesia, 2020. pp. 51.

[30] Idem. pp. 54.

[31] SALGADO, Plínio. Espírito da burguesia. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1951. pp. 72-73.

[32] Idem. pp. 63.

[33] Idem. pp. 63-64.

[34] SALGADO, Plínio. Obras Completas Vol. 9: O que é Integralismo. São Paulo, SP: Editora Das Américas, 1955. pp. 13.

[35] Idem. pp. 14.

[36] FLOROVSKY, Fr. George. Article Corpus Areopagiticum, on The Byzantine and Ascetic Spiritual Fathers. 1978. Translated by Raymond Miller; General Editor Richard S. Haugh.

[37] CESAREA, Basílio de. Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã. Tradução de Diogo Chiuso. Campinas, SP: Ecclesia, 2012. pp. 63.

[38] SALGADO, Plínio. Espírito da burguesia. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1951. pp. 182.

[39] Idem. Ibidem.

[40] CHESTERTON, Gilbert K. O que há de errado com o mundo. Tradução de Luíza Monteiro de Castro Silva Dutra. Campinas, SP: Ecclesia, 2013. pp. 25.

[41] MARÍN, Antonio Royo O.P. Grandes mestres da vida espiritual: história da espiritualidade cristã. Tradução de Ricardo Harada. Campinas, SP: Ecclesia, 2019. pp. 322.

[42] ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Tradução de Iara Faria e José Eduardo Camara de Barros. Campinas, SP: Ecclesia, 2014. pp. 19.

[43] SALGADO, Plínio. Espírito da burguesia. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1951. pp. 14.

 

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