
Vocação é algo que costuma ser mal interpretado. Muitos acham que a vocação tem algo a ver com “gostar do que está sendo feito”. Mas isso não tem relação com a vocação. A quem tem consciência da própria vocação, é bem provável que goste do que vai fazer; e se gosta de algo, grandes são as chances deste “algo” ser sua vocação. Mas disso não deduz nenhuma necessidade. A questão é que, quando gostamos de fazer algo, este “algo” costuma ser mais bem feito, donde se vê a vocação.
A vocação é “aquilo que se faz bem em qualquer circunstância”. Costuma ser aquilo que se tem substrato para trabalhar; por isso se confunde com aquilo de que gostamos, pois é comum ter mais material referente ao nosso gosto do que ao nosso desgosto. Porém o ponto essencial, o quid est, da vocação é “fazer bem”.
Mas maior e mais importante do que esse quid est da vocação é “de onde ela vem”. A vocação é um chamado, um chamado do mundo, do Ser (um chamado de Deus). A vocação é um chamado, um grito do mundo, é quase uma profecia. Explicarei melhor essa questão adiante; primeiro tratarei de partes elementares.
Eu não sou fluente em latim, conheço uns poucos termos filosóficos; mas, de acordo com o “infalível” Google, “vocatione” (vocação) é algo como “a ação de chamar”, ou seja, um chamado. Em todo chamado há um sujeito que chama, do contrário não seria um chamado. Esse “sujeito” pode até ser considerado um aspecto do mesmo sujeito chamado, mas continua havendo distinção lógica entre os dois sujeitos, e isso basta. Para finalizarmos esta etapa, daqui em diante a vocação é exatamente o seguinte: “um chamado para aquilo que faço de melhor”.
Bom, mas quem é o sujeito desse chamado? Como eu disse acima, é o Ser. Aceitaremos isso como um postulado a priori (referente à estrutura do texto); não pretendo prová-lo e após isso postular. É necessário que seja o processo inverso: ele será posto, e após isso provaremos com algumas demonstrações; será “posto à prova”.
A vocação é um chamado do mundo para aquilo que você faz de melhor, para aquilo que só você pode fazer, para aquilo em que você será grandioso e glorioso (no melhor sentido de cada termo). A vocação é um chamado do mundo para o seu lugar nele, ou seja, para aquele lugar em que você, uma peça, se encaixa, e em que nenhuma outra peça se encaixaria.
Claro que quando digo que o lugar para que você é chamado é o lugar em que você será grande, não faço relação com dinheiro e poder. É o lugar em que você “fará história”. Talvez a sua vocação seja de pedreiro, pois você será o melhor pedreiro, e construirá as melhores casas nos menores tempos com os mais justos orçamentos, podendo assim construir mais casas e talvez assim dando moradia para diversas pessoas que necessitavam. Talvez você caia no esquecimento para os outros homens, mas será eternamente lembrado pelo espírito da história: pelo designador do universo.
Este é o problema da vocação, que faz com que alguns tenham medo das próprias vocações. O fato de que nem sempre a vocação está atrelada ao gosto, o fato de que nem sempre a vocação está atrelada ao dinheiro, poder, e desejos realizados. A vocação, o “chamado”, não precisa ser a realização do desejo daquele que foi convocado, mas é a realização do desejo dAquele que convocou. Atender a vocação é, em certa medida, um ato de humildade em relação ao mundo.
A vocação causa medo pois o seu lugar no mundo é o lugar em que você se destaca, e provavelmente por isso o lugar em que mais vai tomar pancada do mundo. Um medo inconsciente muito comum que serve de trava para a perspectiva futura dos jovens modernos (falo isso como alguém que conhece essa condição moderna por experiência) é o medo de TER um lugar no mundo. Não o medo de não-ter lugar, mas o medo de ter uma posição que lhe torne visível e, consequentemente, alvo. Ter lugar no mundo lhe torna um “estranho”. Quando temos “nosso” lugar no mundo, o “nosso” é estranho ao “outro”, e já que poucos entendem a importância da vocação, temos medo do ostracismo que pode ser gerado pelo fato de atendermos ao chamado. É importante compreender que o mundo é uma harmonia entre o “nosso lugar” e o “lugar dos outros”: quando isso não é compreendido com clareza e exatidão, até mesmo as pessoas que escutam o chamado não vão, por medo (e outras nem mesmo escutam).
Um bom exemplo dessa situação é o de Jonas, que foi convocado para ir até Nínive, mas não foi, mesmo tendo consciência de que era um chamado de Deus. Ele sabia que em Nínive seria facilmente identificado como “estrangeiro” (e na perspectiva dele: seria identificado como justo, em meio aos homens que louvavam a injustiça); e movido pelo medo, Jonas preferiu ir até Társis, um lugar mais cômodo do que a temível Nínive. Agora entramos em um ponto crucial deste ensaio. [1]
O caminho da vocação costuma nunca ser o caminho cômodo. É sempre um caminho inexplorado, pois só você pode explorar este caminho, é o seu caminho, o seu chamado; a vocação é sempre mais Nínive do que Társis. Este fator contribui consideravelmente para o medo do chamado, e movidos pelo medo, nós procuramos um lugar mais cômodo. Às vezes, um ofício repetitivo que não exija a imposição de nossa personalidade; às vezes, num sentido acadêmico, uma pesquisa mais fácil e com mais recursos disponíveis, em que não teremos que achar novas informações e muito menos utilizá-las para mostrar algo inédito e/ou importante. O espaço cômodo é criado inconscientemente pela própria sociedade, para que os indivíduos não criem novos problemas (gerados pelas novas pesquisas ou pelos novos ofícios que não estão de acordo com a indústria repetitiva e padronizada); também para ficar mais fácil o controle, já que, jogados em um lugar onde não temos personalidade e que pensamos com nossas próprias cabeças, acabamos submissos aos que estão no topo. [2]
O lugar cômodo, ainda por cima, é tomar o lugar de um outro. Não que esse outro não possa seguir mais sua vocação, mas no sentido de que andamos agora na sombra do outro. É um tipo de idolatria, como sobredito; nós aceitamos a submissão imposta pela nossa condição medíocre (no sentido literal da palavra) e adoramos aqueles que seguem a própria vocação, que estão acima de nós, pois no “lugar dele” ele é exaltado, enquanto somos rebaixados — pois este não é nosso lugar.
Devemos largar o comodismo e enfrentar as pancadas da vida, em busca da realização plena do nosso Ser, em busca de superar nossa situação medíocre e de encontrar nosso lugar no mundo. E deste lugar, talvez apenas deste lugar, podemos verdadeiramente mudar o mundo.
Vale também lembrar que atender à vocação não significa ser bom (no sentido moral). Muitos usam o que sabem fazer para o mal. Mas não convém debater este tema neste não tão breve ensaio.
Concluindo, então, vocação é um ato de virtude, da maior virtude, um ato de caridade; é um ato de se dar ao mundo, se dar Àquele que convoca, mesmo que o caminho não realize nossas paixões, mesmo que não sacie nossa sede de prazer. Às vezes, em alguns casos, talvez na maioria dos casos, nossa vocação é ser crucificado.
Athos Fabri
Ipatinga Σ MG
Notas
[1] Para um aprofundamento neste exemplo tipológico em específico, recomendo o livro Caminhos da Realização do psicólogo e padre ortodoxo (ex-dominicano) Jean-Yves Leloup. Esse livro me estimulou a produzir este ensaio.
[2] Neste ponto (de se submeter ao que está no topo), só devemos nos submeter a Deus (e sua revelação), pois essa é a verdadeira liberdade. Para um aprofundamento neste tema da vocação-liberdade em Deus em oposição a escravidão social, recomendo o livro Reino do Espírito e Reino de César do escritor russo Nikolai Berdyaev.
Muito boas as colocações, a gratidão pode ser a chave da superação.